"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quarta-feira, fevereiro 18, 2009

‘O Brasil é o país do mundo mais parecido com os Estados Unidos’, diz Mangabeira

Instituto Humanitas Unisinos - 16/02/09

Roberto Mangabeira Unger (Rio de Janeiro, 1947) é um Ministro atípico. É professor da Faculdade de Leis de Harvard, escreveu numerosos livros sobre política e construção social e é considerado um dos teóricos mais brilhantes, e polêmicos, no âmbito do pensamento social contemporâneo. É autor de um polêmico ensaio, España y su futuro, que descreve a Espanha como um país sem projeto, incapaz de aproveitar seu potencial. Mangabeira, que se considera de esquerda, foi um duríssimo crítico do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, no entanto, o chamou um dia, no seu segundo mandato, para lhe oferecer uma pasta: Assuntos Estratégicos.

De Brasília, Mangabeira analisa as grandes linhas da vida política, social e econômica do Brasil e as grandes correntes internacionais, mas isso não lhe parece suficiente: “O que procuro é definir iniciativas concretas que encarnem ou antecipem essa mudança na trajetória institucional do país. Escolher iniciativas em políticas públicas setoriais que tenham efeito prático imediato, mas que também prefigurem a mudança de rumo de que o país necessita”. Um dos últimos livros de Mangabeira tem por título O que a esquerda deve propor [Civilização Brasileira, 2005].

Roberto Mangabeira concedeu uma entrevista a S. Gallego-Díaz e Juan Arias e publicada pelo jornal espanhol El País, 9-02-2009. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

O que a esquerda no mundo deveria propor hoje?

Basicamente, há três esquerdas no mundo. Há uma vendida, que aceita o mercado e a globalização em suas formas atuais e que quer simplesmente humanizá-los por meio de políticas sociais. Para essa esquerda, trata-se apenas de humanizar o inevitável. Seu programa é o de seus adversários, com um abatimento social e uma renda moral e narcisista. Há outra esquerda, recalcitrante, que quer desacelerar o progresso dos mercados e a globalização, em defesa de sua base histórica tradicional (os trabalhadores sindicalizados das grandes indústrias). E há uma terceira esquerda, a que me interessa, que quer reconstruir o mercado e reorientar a globalização com um conjunto de inovações institucionais. Para essa esquerda, trata-se em primeiro lugar de democratizar a economia de mercado, em segundo, de capacitar o povo e, em terceiro, de aprofundar a democracia. Eu entendo esse projeto como uma proposta da esquerda para a esquerda. Diria, com uma linguagem provocativa e algo teológica, que a ambição dessa esquerda não é humanizar a sociedade, mas divinizar a humanidade. O objetivo é elevar a vida comum das pessoas comuns ao plano mais alto.

Como analisa a crise econômica internacional?

Eu diria que faz muito tempo que o mundo está submetido ao jugo de uma ditadura de falta de alternativas e que, em geral, na história moderna, as mudanças foram forçadas pelas guerras e pelos colapsos econômicos. O trauma foi o requisito da transformação. Hoje há uma grande pobreza de ideias sobre as alternativas no mundo. As ideias que orientaram a esquerda historicamente, como o marxismo, estão falidas, e a resposta à crise financeira internacional revela de uma forma muito dramática as consequências dessa pobreza de ideias. Não há nada que não seja uma versão mumificada do keynesianismo vulgar, é a única luz nesta obscuridade. Até aqui, o debate esteve quase inteiramente dominado por dois temas superficiais: o imperativo de regular os mercados financeiros e a necessidade de adotar políticas fiscais e monetárias expansionistas. São ideias muito abaixo da dimensão do problema.

O que se deveria debater então?

Tudo o que se pode fazer em matéria de regulação dos mercados financeiros e de expansionismo fiscal e monetário depende, para a sua eficácia, do enfrentamento de três temas mais importantes. Primeiro, a necessidade de superar os desequilíbrios estruturais da economia mundial entre os países com superávit em comércio e poupança, começando pela China, e os países deficitários em comércio e poupança, começando pelos Estados Unidos. O motor do crescimento mundial, nos últimos anos foi o acordo implícito entre esses dois elementos. Esse motor quebrou e vamos ter que conseguir outro. Isso exigirá grandes mudanças nos Estados Unidos, na China e na organização da economia mundial.

Não se trata, então, de regular, mas de reorganizar?

Efetivamente. Vamos ao segundo ponto: a necessidade de que a regulação dos mercados financeiros faça parte de uma tarefa maior, que é reorganizar a relação entre o sistema financeiro e a produção. Da forma como se organizam hoje as economias de mercado, o sistema produtivo está basicamente autofinanciado. Qual é, então, o propósito de todo o dinheiro que está nos bancos e nas Bolsas de Valores? Teoricamente, serve para financiar a produção, mas na realidade só vai obliquamente a esse dever. Esse é o resultado das instituições existentes. Neste sistema, as finanças são relativamente indiferentes à produção em tempos de bonança e são uma ameaça destrutiva quando surge uma crise como esta. Quer dizer, são indiferentes para o bem e eficazes para o mal.

E o debate sobre a distribuição da riqueza?

Esse é o terceiro ponto. O vínculo entre recuperação e redistribuição. Todos admiram a construção, na segunda metade do século XX, nos Estados Unidos de um mercado de consumo em massa. Em princípio, a construção desse tipo de mercado exige a democratização do poder aquisitivo e, portanto, redistribuição da renda e da riqueza, mas nos Estados Unidos aconteceu o contrário: houve uma violenta concentração da renda e da riqueza. Como conseguiram a construção de um mercado de consumo em massa? Parte da resposta está no que aconteceu com a supervalorização imobiliária fictícia. Houve uma falsa democratização do crédito, que fez as vezes da democratização de redistribuição da renda, o que não aconteceu. E agora que esse sistema está destruído, é necessário criar uma nova base para o mercado. O que digo aos meus concidadãos é que quero uma dinâmica de rebeldia, que necessita como aliada a imaginação institucional.

Como estão as relações entre Brasil e Estados Unidos?

Eu sempre digo que o Brasil é o país do mundo mais parecido com os Estados Unidos. São dois países com tamanhos semelhantes, fundados com população europeia e escravidão africana, multiétnicos. Muito desiguais, mas onde as pessoas comuns continuam pensando que tudo é possível. Os Estados Unidos estão buscando, neste momento de inflexão histórica, um sucedâneo ao projeto de Roosevelt. No Brasil, estamos numa busca paralela de um modelo de desenvolvimento. Minha proposta é que construamos experimentos comuns nas instituições que definem a economia de mercado e a democracia (FMI, Banco Mundial, OMC, ONU).

O professor de Obama

Barack Obama é um homem muito inteligente e aberto, mas ao mesmo tempo muito cauteloso”. Roberto Mangabeira teve como aluno o presidente dos Estados Unidos num curso que deu na Harvard dedicado à análise de possíveis alternativas progressistas para democratizar a economia de mercado e aprofundar a democracia. Obama compartilha de suas ideias? O professor de Harvard se expressa com cuidado: “Tenho relações cordiais com ele e um grande apreço. Quando se formou na Escola, recusou convites para trabalhar em grandes empresas e foi ensinar Direito Constitucional em Chicago. Isso mostra a sua capacidade de sacrifício. Mas não se deve centrar tudo na personalidade do novo presidente, mas no próprio país, que vive uma grande abertura”.

Obama é muito representativo da cultura pública dos Estados Unidos, centrado no pragmático”. Poderá responder às expectativas? Mangabeira acredita que a maioria de seus colaboradores é inteligente e experimentada, mas com ideias muito convencionais.

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