Mayline Quant está sentada perigosamente sobre um banco que, uma vez, foi branco e que tem os quatro pés tortos. A história dessa escola estatal, escolhida por acaso, situada em um bairro operário de Manágua, pode ser contada por Mayline Quant, mas também pelo banco. A escola foi inaugurada há 40 anos pelo ditador Anastasio Somoza e foi mudando de nome em função dos sucessivos avatares políticos, mas nenhum governo pensou em pintar as paredes nem em endireitar os pés do banco.
A reportagem é de Pablo Ordaz, publicada no jornal El País, 19-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Hoje, ao se completarem os 30 anos do triunfo da Revolução Sandinista, Mayline Quant – e o banco – se convertem em testemunhas insubornáveis de uma realidade que se afasta cada vez mais dos discursos oficiais. Sobretudo porque, dois anos e meio depois que o comandante Daniel Ortega recuperasse a presidência da Nicarágua, essa escola continua sem ter, por exemplo, luz elétrica.
Mayline Quant é professora há 32 anos e, há dez, é também subdiretora da escola pública Rigoberto López Pérez. Ela fala bem do comandante Ortega. Diz que, logo que chegou, o primeiro que fez foi aumentar o salário dos professores e se preocupar pela situação dos alunos, mas, na linha seguinte, suas palavras vão se tornando mais sombrias.
Fala que as crianças continuam vindo descalças e subnutridas, que não há livros, que cada vez são mais as meninas que, aos 13 ou 14 anos, têm que abandonar a escola por imposição de seus pais ou porque ficam grávidas. "Se você esperar um pouquinho", diz a subdiretora, "você mesmo poderá ver mães de 20 anos vindo buscar seus filhos de oito. São crianças cuidando de outras crianças. E, claro, não sabem, não podem saber. Mães que têm cinco filhos de cinco pais diferentes. Cinco pais que se desentenderam. E que convertem as mães no único sustento familiar. E as crianças, claro, são criadas na rua e na frente da televisão. Esses são seus verdadeiros pais, a mãe rua e o pai televisor. E não pense que estou exagerando. O que eu estou contando não é nenhuma piada. Fique e veja você mesmo".
Mas a senhora dizia que havia melhorado...
Claro. Quando o ditador Somoza inaugurou essa escola, era só para os filhos de seus oficiais. Para a elite. Agora, há aqui 2.800 alunos. Essas crianças têm uma esperança que antes não tinham.
A segunda parada é na Casa Presidencial. O jornalista quer solicitar uma entrevista com o comandante Daniel Ortega. E não há outra forma de tentar um encontro com Ortega a não ser aproximar-se à sua casa, que é também seu escritório, e a sede do Governo, e o endereço da Frente Sandinista de Libertação Nacional... Daniel Ortega se aproveitou da casa, localizada no bairro Bolonia, pouco depois de chegar ao poder em 1979. Expropriou-a de um rico empresário nicaraguense chamado Jaime Morales Carazo. Ortega viveu ali como presidente desde 1979 a 1990, mas, depois de perder as eleições, ficou com a casa. E continua aqui. Em uma fortaleza pintada de rosa.
Na guarita de segurança, o oficial da Polícia Nacional 0707 escuta com os braços cruzados a solicitação do jornalista estrangeiro. Os dois – policial e jornalista – sabem que a tentativa é inútil. Que Ortega não concede entrevistas e que a única forma de ver a sua cara é nas cada vez mais raras ocasiões em que participa de um ato público.
Há dois boatos que circulam com caráter de certeza por Manágua há muito tempo. O primeiro é Daniel Ortega está doente. O segundo – ao qual praticamente todo mundo se inclina – é que quem verdadeiramente governa é a sua esposa, Rosario Murillo. O oficial 0707 continua sem esboçar um sorriso: "Deixe aqui a sua solicitação e já lhe chamarão".
A terceira parada é com um personagem muito curioso. Trata-se, precisamente, do legítimo dono dessa casa, Jaime Morales Carazo. Aos seus 73 anos, já foi de tudo. Empresário de sucesso – e ainda é –, líder da Contra, la guerrilha nicaraguense que, financiada pelos Estados Unidos, lutou contra o governo sandinista de Daniel Ortega na década de 80. Morales Carazo foi também o primeiro chefe negociador diante do próprio Ortega para alcançar a paz. Mais tarde foi deputado liberal, chefe de campanha do ex-presidente Arnoldo Alemán e, hoje, vice-presidente da Nicarágua.
O Caribe produz personagens impossíveis de serem encontrados em outras latitudes. Morales Carazo é um deles. Agora, não só é vice-presidente do homem contra o qual lutou, mas também visita com toda naturalidade a casa que um dia foi sua e se senta para conversar durante horas com o comandante que a roubou dele. Morales Carazo se levanta aperta a mão com força. Sua conversa é amena, sobretudo quando, sem rodeios, revela a cara dupla do presidente Ortega.
- No privado, ele é muito diferente de quando está diante do microfone. Ele conhece bem seu mercado, conhece o seu auditório, sabe a quem se dirige. Em várias oportunidades, eu lhe disse: baixe a retórica, presidente. Às vezes essa obstinação com os gringos parece genética. Mas, a portas fechadas, Daniel Ortega é muito diferente. Um homem com uma admirável capacidade de escutar.
Mas a imagem que ele se esforça em projetar é muito dura. A de um aliado feroz de Hugo Chávez que assusta na região...
Esse é o conflito que se dá entre a retórica e os fatos. Dou-lhe um exemplo. Uma coisa insólita é que nunca os empresários tiveram uma relação melhor com um governo do que com este. Não existe nem a agressividade nem a hostilidade que se percebe de fora.
Mas como membro da Alba essa hostilidade existe...
É que eu não compreendo esse socialismo. Envia uma mensagem equívoca, quando, na realidade, a relação com os empresários e com os EUA é muito positiva.
O jornalista vai embora confundido do escritório do vice-presidente. O Daniel Ortega que Morales Carazo acaba de retratar, mesmo que elogiosamente, é um político com dois discursos. Um Daniel Ortega que empunha a velha bandeira dos sandinistas em público e que, no privado, mantém uma relação esquisita com a elite empresarial.
O curioso é que o encontro seguinte não faz mais do que confirmar essa teoria. A imagem que Dora María Téllez tem de Ortega coincide nesse aspecto com o retrato realizado por Morales Carazo, e isso que um e outro estão nas antípodas pessoais e políticas.
Dora María Téllez foi a Comandante Dois. A mulher que, junto com Edén Pastora, conseguiu tomar o Palácio Nacional de Manágua no dia 22 de agosto de 1978. Dora María Téllez conhece bem Daniel Ortega e sua esposa, Rosario Murillo, e talvez por isso decidiu, em 1995, não continuar acompanhando-os no caminho.
Sentada na cafeteria do hotel Intercontinental, a Comandante Dois diz que Daniel Ortega deixou de ser sandinista há muito tempo. "A sua postura é o orteguismo. Seu projeto é a perpetuação da família Ortega-Murillo no poder. É um projeto de poder sem referências ideológicas. Há um exemplo muito claro: quando ele viu que precisava da Igreja para ter o poder, eliminou o aborto terapêutico, que funcionava na Nicarágua há 100 anos. Sua política é tão neoliberal como a dos governos anteriores". Curiosamente, quando é questionada sobre o discurso tão radical de Ortega, Téllez oferece a mesma resposta, mesmo que com palavras diferentes, que a do vice-presidente Morales Carazo.
- Seu discurso é dramático, porque se faz de porta-voz de Chávez. Mas o seu discurso não é de esquerda, mas sim um discurso de estridência esquerdista...
Morales Carazo e Dora María Téllez também coincidem – e sua coincidência tem mais interesse pela distância de suas perspectivas – no papel de Rosario Murillo. A esposa de Ortega controla tudo. Desde a alta política até os detalhes mais mínimos. As palavras elogiosas do vice-presidente Morales Carazo são: "Rosario é tão perfeccionista que até sofre. Ocupa-se do mais mínimo detalhe". As da comandante Dora María Téllez são: "A Daniel repugna-lhe governar. Porque governar tem a ver com o dia a dia, com o detalhe, com fazer contas. Ele só gosta do discurso e da conspiração, são suas duas únicas atribuições. Mas, como todos os caudilhos, ele se tornou desconfiado. Só confia na sua família. O primeiro círculo de poder dos caudilhos é a sua família. E, depois, o partido. E Rosario Murillo adora exercer o poder. De forma total. No sentido político e também nos detalhes. Preste atenção nos cartazes que estão pela cidade chamando para a celebração do 30º aniversário da Revolução Sandinista. A letra de forma da palavra 'completando' é a letra de Rosario Murillo. Até disse ela se ocupa...".
Um passeio por Manágua revela instantaneamente dois aspectos. Um, positivo. E o outro, muito negativo. O primeiro é que, diferentemente dos países do seu entorno (El Salvador, Guatemala, Honduras), Nicarágua é um país seguro. O crime não amarga o dia a dia. O segundo é que as estatísticas da CEPAL que situam a Nicarágua como o terceiro país com a maior pobreza da América Latina – só depois do Haiti e de Honduras – se faz visível nas crianças desnutridas, mendigando nos semáforos, pendurados, os menores, no peito vazio de suas mães descalças.
O último encontro já é de noite. No ginásio Alexis Argüello. Eliseo tem 14 anos e uma mãe que trabalha de servente na casa de um narcotraficante. Eliseo acaba de chegar em Manágua de Puerto Cabezas, no noroeste do país. Passou 20 horas no assento de madeira de um ônibus amarelo. Mas está contente. Seus treinadores dizem que ele tem jeito, que se movimenta bem, que sua direita é de luxo. Descendente de índios misquitos, mal e mal sabe o espanhol. O suficiente para deixar bem claro por que ele gosta do boxe. "Para ganhar dinheiro e ajudar a minha mãe". Ou para comprar uma Mercedes, como Chocolatito González acaba de fazer, e estacioná-lo na porta de sua casa que está caindo. Ou simplesmente para ter esperança. A que nem os 30 anos de Revolução nem Daniel Ortega souberam dar a Mayline Quant, sentada perigosamente sobre um banco com os pés tortos.
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