Na noite posterior ao golpe em Honduras, com uma Tegucigalpa às escuras, o exército empreendeu uma série de incursões em que prenderam jornalistas, estudantes, dirigentes campesinos, operários, diplomatas e figuras diversas para amedrontar. Allan Mcdonald, o perspicaz humorista do jornal conservador El Heraldo, estava entre eles no aparente hotel em que os retiveram. A solidariedade de seus colegas em todo o mundo foi instantânea. Já em liberdade, censurado pelo seu próprio jornal, Mcdonald falou desde uma cidade da qual, diz, sabe-se pouco e nada do que realmente acontece.
A reportagem é de Angel Berlanga, publicada no jornal Página/12,19-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Honduras amanheceu convulsionada no domingo, 28 de junho, com algo que, está na cara, não se pode dar por erradicado na América Latina: um novo golpe de Estado. Um comando invadiu a residência do presidente Manuel Zelaya, seqüestrou-o e deportou-o à Costa Rica.
A férrea e unânime rejeição internacional aos golpistas cívico-militares é novo, o "modus operandi" dos usurpadores é o tradicional: maquiagens legais, censura aos médios não alinhados e limites aos meios do establishment, repressão, detenções, mortos. Allan McDonald, um dos caricaturistas políticos mais importantes do país, foi detido na noite seguinte à da usurpação.
"Eu estava em minha casa, com a minha filha pequena, que tem 17 meses – conta McDonald de Tegucigalpa. Tinham cortado a luz, e eu tinha a porta aberta, para não estar totalmente no escuro. De repente, vi eles chegarem e entraram: em um primeiro momento, assustou-me a ideia de que fossem deliquentes comuns, porque nessa situação as coisas se confundem. No entanto, se identificaram, eram uns oito militares, e me disseram para os acompanhar, como o argumento de que eu havia violado o estado de sítio. Eu lhes disse que iria com eles e que levaria a minha nenê. Eles queriam que eu as deixasse, mas não tinha com quem deixar. Em um momento, comecei a procurar a mamadeira, eles se assustaram e começaram a destruir parte dos meus trabalhos".
Com o corte da luz, a cidade estava às escuras, e, por isso, ele não pôde identificar o lugar ao qual o levaram: pela arquitetura, diz McDonald, pareceu-lhe um hotel. "Devíamos ser umas cem pessoas, não soube com quem eu estava – conta. Havia estudantes, jornalistas, dirigentes campesinos, operários. Havia ali, além disso, um diplomata venezuelano que tinha um telefone com o qual alertamos ao mundo sobre a nossa situação. A detenção deve ter durado umas cinco horas: não nos perguntaram nada, não nos disseram nada, mas os olhares dos policiais advertiam claramente que caminho devíamos tomar. Em um momento, subiram-nos a um micro-ônibus em que tinha muitas pessoas, e ficamos dando voltas até que amanheceu. Depois, nos deixaram no centro de Tegucigalpa".
Eu iniciei nesse ofício há 24 anos. Tinha 11 anos quando eu comecei. Sei desde pequeno que a desgraça do pobre neste país não só é só o fato de ser pobre, mas também de parecer: a linha que separa a pobreza da riqueza está muito bem marcada em Honduras. Tudo aqui é dual, tudo tem um nome de prestígio e uma imitação: lojas de roupas exclusivas e de roupa usada, shoppings para ricos e outros para pobres, casas de venda de roupas para animais de estimação e crianças que dormem na calçada, diante dessa vitrine, Coca-Cola e Big Cola – um refrigerante que custa a metade do preço – Nike e Naik. Minha caricatura tinha que enfocar na linha cínica que separa os dois mundos, e foi nisso que eu enfoquei. Hoje, trabalho em um jornal de classe alta, de direita radical, que promoveu a saída de Zelaya. No entanto, até agora eles respeitavam as minhas caricaturas.
Há dez dias, ele conta, El Heraldo censura seus trabalhos. E, no entanto, dizem, não o demitem. "Eu sei quais são suas posturas, mas continuo enviando minhas caricaturas com as ideias do caso", diz. "Não sei quanto tempo a situação irá continuar assim", explica.
McDonald está à espera de um passaporte para ir embora do país. "Isso me angustia. Na verdade, não saí de minha casa mais do que para buscar comida – conta. Porque, além de tudo, o que está na frente dessa movimentação é Billy Joya, um homem questionado por fundar os esquadrões da morte".
Como está a situação com a censura em Honduras? Há meios nesse momento em que possam se pronunciar a favor da restituição de Zelaya?
Nem os jornalistas amigos de Zelaya, que tinha muitos, falam dessa volta. Todos os jornais, os rádios e a televisão estão contra Zelaya. A resistência está, fundamentalmente, nas manifestações nas ruas. Quanto aos caricaturistas, a maioria aqui é de direita e faz o que os seus meios os obrigam.
Qual é o grau de mobilização ali?
É impressionante: as pessoas saem às ruas sem pensar nas balas. Devo ser honesto: os ricos organizaram marchas multitudinárias, como nunca. Mas, claro, obrigaram os empregados de seus negócios, as suas empregadas domésticas a ir. Nas marchas a favor de Zelaya, tem cheiro de terra, de suor, você vê pessoas sumamente pobres. E nas outras, você vê gente bem arrumada, com camisas brancas, cantando o Hino à Alegria e "Color esperanza", de Diego Torres. Rostos perfeitos, olhos azuis, sobrancelhas árabes, acentos bilíngues, de educação na escola exclusiva. Um dos jovens que foram mortos, Isis Obed Murillo, vivia em uma aldeia, e, na sua casa, não tinham dinheiro nem para comprar o caixão. Isso indica que nasceu a consciência do golpe em Honduras.
McDonald se queixa da unidirecionalidade cultural do seu país. "A maioria só vê televisão e mal e mal lê. O futebol é um deus em Honduras – explica. E então, quando alguém diz que a vida de um caricaturista está em perigo, eles se riem: 'Quem vai querer matar alguém que faz pouca coisa?', dizem sarcasticamente. É decepcionante. Nem os artistas plásticos entendem uma imagem política".
Em contrapartida, caricaturistas de todo o mundo se solidarizaram com sua situação e fizeram uma série de trabalhos sobre a sua detenção e o golpe. "Quero lhe dizer que os ricos odeiam Zelaya – conclui. Mais por sua forma do que por suas posturas. Detestam que ele use bigode e chapéu, ou que ande a cavalo. Odeiam com loucura vê-lo comer com as mãos no mercado. Ou que tenha convidado a etnia mais miserável do país, os tolupanes, que fossem se sentar nos móveis de luxo da casa presidencial. Odeiam que se relacione com os feios e miseráveis. Por isso o mandaram embora".
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