Na Nicarágua Daniel Ortega age para neutralizar e calar as siglas de oposição no país e criar sistema bipartidário de fachada.
A análise é de Michael Deibert e publicada no jornal Folha de S.Paulo, 31-08-2008.
Eis o artigo.
No Museu e Galeria dos Heróis e Mártires, em Masaya, uma cidade no sul da Nicarágua, os rostos dos jovens patriotas que deram a vida para libertar esse país empobrecido de sua tradição de despotismo contemplam o visitante das paredes, ocupadas por fotografias. Em meio ao firmamento de levantes políticos centro-americanos da segunda metade do século 20, Masaya, uma hora ao sul da capital, Manágua, desempenhou papel decisivo.
Em fevereiro de 1978, Monimbó, um bairro de Masaya, lançou a salva inicial naquilo que se tornaria o levante que derrubou o ditador Anastasio Somoza Debayle. Somoza seria removido do poder um ano mais tarde, e a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), um movimento guerrilheiro de esquerda, chegaria em triunfo a Manágua, em uma vitória que galvanizou insurgentes em toda a região.
Hoje, um dos mais visíveis líderes daquela revolução de 1979, o sandinista Daniel Ortega, voltou à Presidência, depois de vencer as eleições de 2006, para retomar o cargo do qual havia sido ejetado na eleição geral de 1990. A FSLN se transformou em um dos dois maiores partidos políticos nicaragüenses, mas a paisagem política do país sofreu imensa metamorfose nesse meio tempo.
"Fui ferido combatendo os contras", diz López Davila, 42, taxista de Monimbó, em referência aos remanescentes da Guarda Nacional de Somoza e outros oposicionistas patrocinados pelos Estados Unidos, que combatiam para derrubar a FSLN até a assinatura dos acordos de paz do começo dos anos 90. “Mas agora todos os políticos são iguais. Não acreditamos em nenhum deles”.
Mesmo antes de retornar ao poder, 18 meses atrás, Ortega havia solidificado sua posição como comandante de uma FSLN cada vez mais centralizada, sobre a qual ele e um pequeno grupo de familiares e assessores exercem controle virtualmente incontestado.
A despeito dos ataques constantes de Ortega contra o capitalismo em seus discursos, o papel de vanguarda da esquerda que a FSLN exercia foi substituído, nas questões econômicas, por uma abordagem mais comedida, sob a qual o governo procura elevar a produção por meio de um programa de empréstimos de baixo custo aos agricultores, em uma sociedade em larga medida agrária.
As maquinações políticas de Ortega nos últimos anos atraíram mais atenção do que a política fiscal de seu governo, no entanto. Elas variaram de cobrir o país de cartazes em que ele elogiava a si mesmo e ao seu partido a conspirar com o Judiciário e o Legislativo da Nicarágua de maneira a impedir qualquer chance de seus adversários chegarem ao poder.
Em junho, o Conselho Supremo Eleitoral (CSE) decidiu que dois pequenos partidos de oposição – o Partido Conservador e o Movimento de Renovação Sandinista (MRS), fundado por dissidentes da FSLN em 1995 - não teriam direito de disputar as eleições municipais que acontecerão em novembro.
O motivo oficial apresentado pelo CSE era o fato de os dois partidos não terem fornecido a documentação necessária, ainda que diversas outras agremiações em situação semelhante não tenham sido excluídas. Os detratores do governo dizem que a medida é uma tentativa da FSLN e de seu oponente nominal na eleição, o Partido Liberal Constitucionalista (PLC), de manipular a votação.
A decisão do CSE, composto por fiéis partidários de Ortega e de Arnoldo Alemán, o líder do PLC, de proibir que Eduardo Montealegre, antigo membro do PLC e segundo mais votado na eleição presidencial de 2006, assumisse a liderança de seu novo partido, a Aliança Liberal Nicaraguense, parece servir como confirmação desses temores.
Uma decisão semelhante pelo CSE, de suspender até abril de 2009 as eleições em três municípios da região autônoma do Atlântico Norte -uma área remota do país e antigo baluarte dos contras, habitada por tribos indígenas tradicionalmente adversárias do governo de Manágua- já provocou tumultos nos quais uma dúzia de pessoas saiu ferida.
"A exclusão arbitrária desses partidos políticos é uma verdadeira ameaça à saúde democrática do país", diz Gonzalo Carrión Maradiaga, diretor da ONG Centro Nicaragüense de Direitos Humanos. "É uma ação calculada porque unidos, esses partidos representam ameaça à FSLN e ao PLC, e a motivação fundamental é forçar a Nicarágua a se tornar um sistema bipartidário."
Suas palavras poderiam parecer exageradas não fosse o fato de que, em 1999, foi revelado que Ortega e Alemán haviam de fato fechado um acordo político secreto que lhes conferia vastos poderes na Assembléia Nacional, na qual hoje os sandinistas detêm 38 assentos e o PLC, 25, em um total de 92. Além de dividir os cargos públicos entre os partidários da FSLN e do PLC, o acordo permitiu aos dois partidos exercer grande influência sobre instituições judiciais como o CSE.
Alemán, ex-presidente condenado em 2003 por corrupção durante seu governo, entre 1997 e 2002, foi listado em relatório da Transparência Internacional entre os dez líderes mundiais mais corruptos, depois de ter desfalcado os cofres públicos do país em montante estimado em US$ 100 milhões.
Condenado a 20 anos de prisão, Alemán cumpre sua pena em um regime muito frouxo de prisão domiciliar, perto de Manágua, e continua a viajar pelo país para conduzir reuniões políticas. Observadores políticos definem a atual situação do antigo presidente como a de um "parceiro menor" na aliança com Ortega ou até como a de "prisioneiro" do presidente.
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