O metrô de Amsterdã é movido a lixo. Os prédios públicos da cidade e a iluminação das ruas vêm de fontes renováveis. O monumental edifício De Bazel, um arroubo art nouveau no centro da capital holandesa, armazena calor do Sol no lençol freático que está 150 metros abaixo, e é na subida da água que o prédio fica aquecido no inverno. A Holanda está levando a sério a meta de ter 30% de sua matriz energética de energia limpa e renovável nos próximos 11 anos. Por aqui, calor é commodity, vento é energia e as casas são "neutras" em carbono.
A reportagem é de Daniela Chiaretti e publicada pelo jornal Valor, 16-07-2009.
Às vezes, as casas holandesas se superam e se tornam "climaticamente positivas". O que isso quer dizer se explica didaticamente em Leusden, uma cidadezinha de 30 mil habitantes na Província de Utrecht, no centro dos Países Baixos. Ali, numa rua pacata, o número 22 tem tijolos aparentes e um segredo no porão. Nos 230 metros quadrados distribuídos por três andares não só se produz energia suficiente para garantir o aquecimento, ter boa luminosidade e ligar todos os eletrodomésticos e eletrônicos habituais, como para vender a energia não consumida à rede.
Perto da garagem dessa usina particular fica a casa de máquinas. Uma parede cheia de tubos conectados a um computador dá conta da energia produzida pelo pequeno moinho de vento no telhado, pelos painéis solares espalhados aqui e ali e por um sistema geotérmico que capta o calor e o joga para dentro da terra, um método que parece disseminado por aqui. Se quisesse, o proprietário Johannes Out, 29 anos, poderia sair com o carro elétrico que está à porta e dirigir cinco mil quilômetros por ano com a energia que a sua casa produz. Ou seja, poderia ir e voltar todo dia ao trabalho sem gastar nada com combustível.
Ele inventou a casa, ainda única na Holanda, pesquisando o que existe em construção sustentável e energia renovável na Alemanha, na Suíça e nos países nórdicos. Bebeu na fonte do que existe de mais ousado em materiais renováveis e novos. Ergueu seu lar de € 550 mil usando uma liga à base de granulado de vidro (reciclado de garrafas velhas) e concreto e um material muito similar ao isopor como isolante. A casa é toda envidraçada, o que garante luz natural e boa ventilação no verão. Os vidros são triplos, para vedar bem no inverno e reter o calor. As lâmpadas são supereficientes, de 7 watts, no máximo, cada. Um interruptor parecido a um i-Pod controla tudo. A casa, estima Out, custou apenas 10% a mais do que uma construída sem todas essas traquitanas "verdes".
Um exemplo grandioso da reforma de interiores que os modernos batizaram de "retrofit", está no coração de Amsterdã. O De Bazel é dos melhores casos de um monumento que foi transformado em prédio contemporâneo e sustentável. Junto ao Palácio Real, à Praça Dam e ao Rijksmuseum (onde estão os quadros de Rembrandt), o De Bazel é tido como uma das construções mais lindas da cidade.
O nome vem do arquiteto K.P.C. Bazel que o projetou nos anos 20 para ser a sede da empresa sucessora da mítica Companhia das Índias Ocidentais. Virou sede de banco e nos anos 90 o governo holandês o transformou no arquivo da cidade. "O isolamento é muito 'high tech', mesmo que você nunca o veja", entusiasma-se o diretor Jan Boomgaard. Ele aponta para o centro e para o alto do prédio, o fígado do gigante, onde só se vê uma abóbada de vidros. "Espiem as canaletas entre eles", continua. É por lá que o ar aquecido pelo Sol do verão desce para o lençol freático e esquenta a água que é bombeada de volta no inverno. Como é um prédio histórico e está no centro de Amsterdã, não se podia crivá-lo de moinhos eólicos ou placas solares. "Mas nós o fizemos o mais eficiente possível", continua Boomgaard.
Foram investidos € 62 milhões na empreitada. O De Bazel possui 16 diferentes zonas climáticas onde se controla a temperatura e a umidade. Todos os vidros são duplos. Em sete anos o que se gastou no sistema de aquecimento estará pago. "Mantivemos o compromisso de preservar o passado numa instalação do futuro", vangloria-se Jaap Gräber, da Claus em Kaan Architecten, a empresa de arquitetura que planejou e executou o ambicioso retrofit.
Os holandeses fazem escola no design irreverente e seus arquitetos são competentes em traduzir o conceito de contemporaneidade. Se a moda agora é mirar na baixa emissão de carbono, as pranchetas holandesas desenham até rodovias sustentáveis, seja lá o que isso signifique.
O plano da empresa Movares Nederland B.V. é construir uma cúpula de vidro sobre uma estrada. É assim, desse jeito meio mirabolante, que eles imaginam reduzir o barulho e as emissões de material particulado e outros poluentes como o CO2 que saem dos escapamentos dos carros. Um sistema de carvão ativado, no topo da cúpula, filtraria os gases. O vidro isolaria o barulho. No asfalto, um feixe de canaletas absorveria a energia produzida pelas células fotovoltaicas colocadas entre os vidros e levaria o calor para os aquíferos.
Cobrir 25% da cúpula com as células solares garante 1.350 MWh por quilômetro por ano, o que corresponde a uma redução anual de emissão de 750 toneladas de CO2", diz o consultor sênior da empresa, Lazló Vákár. Ainda não há nenhuma rodovia do gênero na Holanda - mas os guard rails das estradas já são assombrosas estruturas altas de vidro. É uma forma de manter a paisagem preservada.
Quem passa vê moinhos de vento antigos e modernos, vacas e campos de tulipas - e quem mora por perto não fica surdo.
O que está acontecendo na charmosa Delft, a cidade das cerâmicas azuis e dos preciosos quadros de Johannes Vermeer, tem menos cara de desenho dos Jetsons. O projeto "100 tetos azuis em Delft" começou com a instalação de painéis solares em 144 casas da cidade histórica. Delft provou com a experiência que a energia sustentável pode ser aplicada em construções já existentes. O projeto cresceu e já tem 400 participantes.
"Quanto sustentáveis podemos ser?", perguntou o príncipe Willem-Alexander durante a abertura da 3ª SASBE, a maior conferência internacional sobre construções sustentáveis, em junho, no plenário da Universidade de Tecnologia de Delft. "E quão longe podemos ir com a mudança climática?", prosseguiu.
Bangladesh tem sofrido com inundações que a deixam debaixo d´água e a Austrália acaba de viver uma seca sem precedentes", continuou. O futuro rei dos Países Baixos frisou o conhecimento que os holandeses têm no gerenciamento da água. O país produz 65% de seu PIB em regiões que estão abaixo do nível do mar. "É tempo de adaptar e viver com a água, e não lutar contra ela".
Um passeio de barco pelos canais de Amsterdã ilustra o quanto esse pessoal gosta de bancar o marujo. Os barcos-casas, marca-registrada da cidade, ocupam todos os espaços disponíveis. Calcula-se que existem cinco mil ancorados na capital. Há para todos os gostos, de todas as cores e de todos os tipos. Mas um deles, o Gewoonboot, é diferente. Trata-se de um projeto de casa flutuante completamente autossustentável. Ele fica numa região ao norte da cidade, por onde Amsterdã planeja crescer.
O governo local lançou uma espécie de concurso arquitetônico para planejar as 2000 casas novas que deverão ser construídas na área. Ganhará o projeto que for mais ecológico. Por ali está ancorado o barco de 120 metros quadrados que tem placas solares no teto, enormes vidraças e um sistema que aproveita a chuva e recicla e limpa toda a água utilizada na embarcação, inclusive dos chuveiros e sanitários. "Todos sabemos que o nível do mar está subindo", diz Pauline Westendrop, ligada ao projeto. "Essas experiências podem evoluir para boas soluções." Por enquanto a adaptação às mudanças climáticas exige também boa dose de atitude zen. Em uma bomba de energia elétrica próxima, os novos carros e motos podem recarregar e seguir viagem. Só que demora. Muito. Uma moto pode levar até cinco horas para sair rodando de pilha nova .
A aposta é que o sistema será muito mais eficiente no futuro. Em 2015, a prefeitura da cidade pretende ter 10 mil carros elétricos para alugar. Funciona assim: o usuário pede um automóvel, o apanha em local determinado e devolve depois em lugar marcado para que outro cliente o utilize. O sistema já está em uso, com carros vermelhos de logotipo verde que se avistam pela cidade. Mas ali, é bom lembrar, é Amsterdã e todo mundo prefere andar de bicicleta.
Os planos de adaptação à mudança climática e redução de emissão de gases-estufa têm várias frentes. Estima-se que existam 18 mil pequenos negócios na capital, entre cafés, bares e lojas. "Gastam muita energia", cita Tom van de Beek, consultor do escritório de clima do governo municipal. A proposta é estimular os proprietários a solicitar a visita de um consultor em energia renovável e esperar que se animem a pedir o empréstimo de € 10 mil com carência de quatro anos para começar a pagar. Assim, podem modernizar o estabelecimento e a cidade se aproxima de seus objetivos.
A meta é que, em 2018 todas as casas da Holanda tenham energia renovável. Em 2012, um projeto do governo irá melhorar o sistema de manter o calor de 500 residências durante o inverno. O país está se voltando mais e mais para energias novas, na esteira do que vem fazendo com sucesso a Alemanha e a Dinamarca. O foco é maior em ventos e biomassa do que em energia solar. O processo fotovoltaico ainda é pouco competitivo. Hoje cerca de 3% da energia elétrica da Holanda vem dos ventos. São 2 mil MW em terra e 200 MW no mar - por enquanto. Eles gostam de marcar este "por enquanto". A intenção é dobrar os megawatts em terra no curto prazo e chegar a quase 1 mil MW em offshore ao final do ano.
"Mas nada disso é suficiente para alcançarmos a meta que nos propusemos em 2020", diz Jan Terlouw, o conselheiro do governo holandês para mudança climática. Na sua visão, esta demanda não passa, porém, pela necessidade de utilizar mais energia nuclear. "Não me oponho a ela, mas não acho que precisamos de mais nuclear na Holanda", diz, lembrando que o país tem ainda muitas reservas de gás natural. "Usinas nucleares são bem difíceis de serem desligadas."
Uma experiência impressionante de uso de biomassa acontece no norte do país, em Zeewolde, lugarejo de 20 mil habitantes. Eles geram ali três vezes mais energia "verde" do que energia "cinza". Um fazendeiro da comunidade produz energia com os dejetos de suas vacas leiteiras. Uma vaca fornece energia para o consumo de sete casas durante o ano. "O preço do leite está tão baixo que agora é melhor ter a opção do preço da energia", diz Jan Gerrit, que há cinco anos entrou na onda da biomassa com suas 140 vacas. "Energia será um problema no futuro", vislumbra. Ele garante com seu rebanho o suprimento de umas 500 casas.
Os holandeses se definem como um povo inovador e criativo. Eles mesmos fazem autocrítica e dizem que têm dificuldades em implementar o que inventam. Não é o que se vê na zona industrial de Amsterdã, onde fica a Afval Energie Bedrijf, a empresa que cuida do lixo da cidade. Trata-se de um ícone da gestão de resíduos: transforma 99% de todo o lixo doméstico de Amsterdã em energia verde, calor e materiais reciclados para uso na construção. A AEBNadia Pattavina. processa mais de 1,4 milhão de toneladas anuais de resíduos. O metrô e a iluminação pública funcionam à base de energia gerada do lixo. O teatro, a prefeitura e o Jardim Botânico usam a energia verde produzida pela empresa. Os resíduos viram biomassa, a biomassa vira calor, o calor vira energia. O material particulado produzido na queima dos 1% que eles não aproveitam, forma um granulado usado no asfalto das ruas. "Das nossas chaminés só sai vapor d'água", jura a porta-voz
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