Quinta-feira, 8h25 da manhã. Pelo portão de desembarque 2 do aeroporto internacional de Guarulhos chegam os passageiros da Japan Airlines (JAL). É mais um vôo que veio lotado do Japão. O salão aos poucos começa se encher de nikkeis (nome dado aos descendentes de japoneses nascidos fora do Japão). Pelo volume de bagagens é possível identificar os decasséguis brasileiros, que migraram em busca de trabalho e agora voltam ao Brasil em função do cenário econômico.
A reportagem é de Cibelle Bouças e publicada pelo jornal Valor, 09-12-2008.
Os passageiros chegam visivelmente cansados após quase 27 horas de viagem e precisam aguardar mais algumas horas para fazer a conexão para outras cidades. A maioria são homens na faixa etária entre 25 e 40 anos (perfil que recebe melhor remuneração para trabalhar no Japão). Também há casais e famílias de três ou quatro pessoas. Reconhecer o decasséguis não é difícil. "Quem viajou a passeio volta com duas malas, o decasségui chega com cinco, seis malas", aponta o agente de viagens Rogerio Sato, da Nichiyu International, empresa sediada no Japão que cuida do transporte de passageiros e bagagens de lá para o Brasil.
Apesar do cansaço e da desorientação causada pela diferença de fuso horário, alguns decasséguis aceitaram conversar desde que seus nomes fossem mantidos em sigilo. Mais do que emocional, a razão é cultural: para os japoneses que vivem no Brasil, trabalhar no Japão é um teste de excelência profissional e a demissão é entendida como um fracasso pessoal, a despeito da crise financeira internacional, que já apresenta reflexos na economia real do país há cerca de um ano.
Os aumentos de até 25% em preços praticados no varejo, influenciados principalmente pela disparada nas cotações internacionais do petróleo, que chegou a alcançar US$ 146,60 o brent em 3 de julho, foram o primeiro sintoma. O país, que conviveu por muitos anos com deflação ou inflação de no máximo 0,3%, atingiu no acumulado de 12 meses, até julho, inflação de 2,3% (em outubro caiu para 1,7%). Somou-se a essa alta à queda do Produto Interno Bruto (PIB) e à transferência de empresas do Japão para a China em função da diferença nos custos de produção, gerando um processo de demissões em massa, que começou pelo segmento de eletroeletrônicos e agora afeta montadoras e a indústria de autopeças.
Outro fator pesou contra o desempenho das empresas exportadoras japonesas, observa o presidente da Associação Brasileira de Dekasseguis (ABD), Kyoharo Miike. Como a moeda e a economia do Japão são muito estáveis, assim que o dólar começou a se desvalorizar houve uma forte procura pelo iene. Muitos investidores usaram a moeda como proteção e houve até falta de ienes no mercado. "O iene foi uma das pouquíssimas moedas que se valorizou frente ao dólar e isso dificultou ainda mais a exportação pelas empresas japonesas", afirma. Sem conseguir exportar e com a demanda interna encolhendo, tornou-se questão de ordem reduzir produção e cortar pessoal. Cálculo do Valor Data revela que, em 12 meses até 5 de dezembro, o iene valorizou-se 20,5% frente ao dólar americano.
Um dos decasséguis que chegou ao Brasil na semana passada conta que trabalhou em empreiteiras no Japão durante 16 anos, passando por diferentes cidades. Mas a demora em conseguir uma recolocação o obrigou a voltar após cumprir o mês de aviso prévio. "Estava morando no alojamento da empresa e, acabado o contrato, eu tinha uma semana para deixar as minhas coisas. A situação lá ficou muito difícil. Já passei por outras crises, a última tinha sido em 2002, mas dessa vez a coisa é séria", contou o nissei, enquanto aguardava a chamada do vôo de retorno a Londrina (PR).
De acordo com estimativas do Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar Social do Japão, aproximadamente 30 mil trabalhadores temporários devem perder o emprego até março de 2009, quando se encerra o ano comercial para as empresas daquele país. Desse total, cerca de 5 mil são brasileiros e a expectativa é que esse número cresça para 8 mil até o fim do mês. "A ser verdadeiro o que anunciaram as montadoras japonesas, cerca de 14 mil trabalhadores perderão seu emprego formal até março de 2009", afirma o vice-cônsul geral do Brasil em Tóquio, Marcos Torres de Oliveira. Pesa contra os brasileiros o fato de a maioria dos contratos ter duração anual, facilitando a dispensa, diz Oliveira.
O vice-cônsul afirma que a prática é comum entre as empreiteiras. "Religiosos [da Igreja Católica] que atuam na área de assistência social disseram que há fiéis desempregados dormindo nas dependências das igrejas. Na jurisdição do Consulado-Geral em Tóquio há pessoas desabrigadas em situação bastante precária, na região próxima a Oizumi", diz.
Um dos decasséguis informou conhecer brasileiros que estão desempregados e morando no próprio automóvel enquanto não conseguem emprego. "Realmente há gente desempregada morando na rua, principalmente nas grandes cidades, mas não vi brasileiro nessas condições onde estávamos", contou um casal que estava vivendo na cidade de Haneda, pólo indústrial próximo a Tóquio. O marido estava no Japão havia 15 anos e também trabalhava numa empreiteira.
A esposa viveu no Japão por 12 anos e trabalhava numa indústria de alimentos. Ambos foram demitidos em outubro e estavam aguardando um vôo para regressar ao Brasil. "Todos os vôos estão lotados. Voltamos pela JAL, que a empresa com a passagem mais cara, porque era a única que tinha vaga. Quem não tem dinheiro para voltar está lá em situação muito precária", afirma o marido. "O problema de ficar lá é que cada dia sem trabalho é só gasto. Gasto para morar, gasto para comer. Nós temos casa própria lá e deixamos alugada para outros brasileiros que ficaram. Agora vamos ficar um tempo no Brasil até a situação melhorar por lá", diz.
O casal conta que muitos brasileiros na região de Haneda participaram de um programa de financiamento imobiliário de longo prazo para brasileiros, lançado no Japão há três anos. O programa concede prazo de 40 anos para pagar a hipoteca e, na compra do imóvel, a família tem direito de financiar a mobília e o veículo. As prestações custam em torno de 70 mil ienes (menos de US$ 800) ao mês, quando o aluguel de um imóvel varia de 80 mil a 100 mil ienes (entre US$ 900 e US$ 1,1 mil). "Ao que parece, esses estão em situação pior, porque além de terem perdido a renda, estão endividados com a hipoteca", afirmam.
Uma das opções para quem perde o emprego no Japão é recorrer à assistência dada pela prefeitura, que aluga apartamentos a custos baixos (em torno de US$ 10 ao mês). Para isso exige-se que o decasségui não tenha um registro nacional de estrangeiro 'sujo' - com muitas anotações de mudança de emprego em menos de um ano - e demonstre que está disposto a conseguir outro trabalho, ainda que seja para ganhar menos.
"Nesse ponto eles são mais condescendentes com estrangeiros do que com os próprios japoneses. É considerado humilhante um japonês nascido lá recorrer ao serviço social", afirma o decasségui, que trabalhou uma empreiteira no Japão e voltou em maio deste ano, após viver quatro anos fora do Brasil.
"Na fábrica em que eu trabalhava havia 1.200 brasileiros no começo do ano. Hoje existem 350", afirmou. O decasségui já está empregado em São Paulo e não tem intenção de voltar no curto prazo. "Essa crise deve demorar a passar. Por isso comprei a passagem de volta, e fiz o pedido de 're-entry' [visto de reentrada], caso a situação aqui também piore e decida voltar para o Japão", explica ele.
A dificuldade para obter um novo emprego com as mesmas condições salariais do trabalho anterior e o alto custo de vida têm estimulado a volta de brasileiros que vivem no Japão. Marcelo Albarossi, diretor de vendas da agência de turismo Sakuratur - criada para agenciar viagens de decasséguis e que também presta serviços às agências japonesas - , afirma que a emissão de passagens de retorno do Japão para o Brasil aumentou 40% neste ano, passando para 1.800 passagens por mês, na média. Já o fluxo de brasileiros para o Japão caiu 80%. "A procura quase se extinguiu e agora as agências de turismo, antes voltadas a atender a esse público, estão procurando outros segmentos para se manter no mercado", afirma o empresário.
Para os brasileiros que querem voltar, o tempo médio de espera para reserva de passagens é de dois meses. O diretor de vendas da Japan Airlines (JAL), Shigehiko Komatsu, afirma que os três vôos semanais da empresa de Haneda ou Narita para Guarulhos seguem lotados até o fim do ano. "Não só a JAL, mas todas as companhias aéreas que operam vôos do Japão para o Brasil [Emirates, KLM, Lufthansa, Delta Airlines, Continental, Air France e Swiss Air] chegam lotados, enquanto a procura por vôos do Brasil para lá praticamente não existe mais", afirma o diretor da Japan Airlines.
A emigração de brasileiros ao Japão em busca de trabalho começou na década de 80. Em 1990, 56 mil decasséguis saíram do Brasil. No ano passado, foram 317 mil. De acordo com dados do Ministério das Relações Exteriores, existem atualmente entre 280 mil e 300 mil brasileiros residindo no Japão, sendo o terceiro país em número de brasileiros, depois de Estados Unidos (cerca de 750 mil pessoas) e Paraguai (350 mil). Em termos de remessas de divisas, os decasséguis que vivem no Japão ocupam a primeira posição em volume de recursos enviados ao Brasil. Segundo dados do Departamento Econômico do Banco Central, em 2007 os residentes no Japão fizeram remessas de US$ 647,4 milhões ao Brasil. Neste ano, até outubro, o valor já soma US$ 591 milhões.
O gerente de operações do Banco do Brasil na Ásia, Admilson Monteiro Garcia, afirma que a valorização do iene e a depreciação do real frente ao dólar também contribuíram para que o fluxo de remessas aumentasse neste ano. Das operações realizadas pelo banco - principal agente financeiro a administrar tais remessas do Japão ao Brasil - em setembro, houve crescimento de 30% em volume e quase 100% no valor transacionado em relação ao mesmo mês do ano passado. Em outubro, o crescimento foi maior, de 50% em número de transações e de 140% em valor enviado ao Brasil.
"Vários clientes efetuaram remessas de acentuado valor por estarem perdendo seus empregos e retornando ao Brasil. É um movimento de transferência de patrimônio para viver no Brasil e aguardar a recuperação dos postos de trabalho no Japão, pensando em um eventual retorno", avalia Garcia. O banco, que possui 130 mil correntistas no Japão, projeta para 2008 um incremento de 20% nas remessas ao Brasil.
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