“Os perigos criam oportunidades... As adversidades globais desestabilizam a ordem existente e podem ser vistas como um passo vital rumo a novas instituições”. Nesta entrevista, o grande sociólogo alemão Ulrich Beck tenta inverter as análises apocalípticas sobre o nosso tempo. E propõe uma “saída estratégica” para se aprender a viver bem, apesar do terrorismo, das mudanças climáticas e das crises econômicas.
A reportagem é de Riccardo Staglianò, publicada no jornal La Repubblica, 21-12-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A segurança é o novo totem. Sempre mais, o mundo escapa das mãos. Se algum dia nos iludimos com isso, hoje certamente não o controlamos mais. Terrorismo, mudança climática, crise financeira, ou seja, inimigos reais, mas sem rosto. E depois a precariedade no trabalho e nos afetos. Não há mais nenhuma lajota existencial, daqueles sobre as quais estávamos acostumados a ficar de pé, que não tenha sido removida pelo grande cisma da pós-modernidade globalizada. Sobre esse terreno desconexo, avança um homem inevitavelmente cambaleante. Ele não sabe mais lidar com os novos perigos. Os políticos, na mesma condição, exageram nos alarmes, para que ninguém possa acusá-los, depois, de negligência. Com o pé-de-cabra da emergência, fazem passar leis e limitações da liberdade que ninguém aceitaria de outra forma. Já os nomeando, falando tanto disso, esses espantalhos intoxicam a convivência e o discurso público. A sua mise-en-scène antecipada já é a catástrofe. Que, depois, os eventos se realizem ou não se torna quase um opcional.
É nesse estado febril de medo e ansiedade, a nova conditio humana, que devemos aprender a nos mover. Dando um robusto desconto às preocupações para sobreviver. Essa é a lição que Ulrich Beck, um dos maiores sociólogos contemporâneos e inventor do conceito de Risikogesellschaft, “sociedade do risco”, nos dá nesta entrevista. Iluminando muitos dos paradoxos dos quais, muitas vezes, somos espectadores inconscientes. E presenteando ao leitor, carregado pela narrativa apocalíptica destes tempos, uma saída estratégica metodológica: “Os riscos criam oportunidades”. Só os mortos não correm mais atrás delas. Os vivos se alimentam delas, sem se deixar esmagar. Portanto, nenhum tabu.
Professor, no verão de 2006, foi desvendado um suposto ataque aos aviões da Grã-Bretanha sobre os Estados Unidos. Perigo desvendado, mas desde então ninguém pode levar líquidos nos vôos. Conseqüência desproporcional?
Não é um ritual fenomenal – e divertido – que milhões de passageiros, em cuja mente se aninhou a ameaça terrorista, aceitem, dia após dia, limitações do gênero à sua liberdade? Isso me faz lembrar a dança da chuva dos índios. Eles dançavam para convencer os deuses a fazer chover, nós para produzir um sentimento de segurança frente a uma ameaça terrorista aparentemente presente.
Os riscos estão em todos os lugares. Como podemos calculá-los?
Mesmo que nos esforcemos, os riscos não podem ser evitados. Na carreira, arrisca-se tomar o caminho errado. Nos transportes, de causar um acidente. No amor, o coração despedaçado. E, às vezes, nos agrada também arriscar, correndo mais rápido ou desafiando um amor incerto contra todas as possibilidades. Mas a ameaça terrorista é fundamentalmente diferente. Não pode ser enfrentada individualmente, nem existe uma base científica sobre a qual avaliar suas probabilidades. Simplesmente, não sabemos calculá-las.
O senhor descreve o presente distinguindo “incertezas fabricadas” dos ricos aos quais éramos habituados. Poderia nos explicar melhor?
A diferença principal está no fato de que se perdeu o controle do risco. Acontece quando pelo menos uma quantidade no cálculo clássico (o ator, a tentativa e o potencial) fica desconhecida. Como acontece nos casos das mudanças climáticas, dos riscos terroristas e financeiros. O novo ponto crucial, porém, não é só a consciência dessa ignorância, mas também que o Estado responde fingindo ter um maior conhecimento e controle. Entende a ironia na ostentação de segurança sobre algo, mesmo se não se sabe se isso existe! Isso nos leva à dança da chuva de que falávamos no começo.
Mas por que devemos ficar preocupados com aquilo que nem ao menos conhecemos?
A resposta sociológica é: porque, frente à produção de incertezas fabricadas, a sociedade, mais do que nunca, confia e insiste na segurança e no controle. E isso não é verdade só nas esferas da política nacional e internacional, mas também nas da vida cotidiana, como demonstra a prontidão em aceitar limitações à liberdade, como nos vôos. Por isso, a sociedade mundial do risco deve enfrentar o desagradável problema de ter que tomar decisões sobre bilhões de dólares ou euros e também sobre a guerra e a paz sobre a base de uma ignorância mais ou menos admitida.
Não se acaba, assim, confundindo o limite entre racionalidade e histeria?
Certamente. Os políticos, particularmente, podem facilmente ser obrigados a proclamar uma segurança que não chegam a honrar, porque os custos políticos de tais omissões seriam muito mais altos do que os de uma sobrevalorização. Por isso, no futuro, não será fácil limitar e prevenir o diabólico jogo de poder com a histeria do não-saber. E aqui não ouso nem pensar nas tentativas deliberadas de instrumentalização da situação.
Escrevendo sobre Bin Laden, o senhor aponta o dedo contra a imprensa, que cria um público para as ações da Al Qaeda. Mas como ela deveria se comportam para não cooperar involuntariamente com o inimigo sem renunciar à missão de informar o público?
Exagerando um pouco, pode-se dizer que não é tanto o ato terrorista, mas sim a sua representação global e as antecipações políticas que ele cria, com ações e reações, que estão destruindo as instituições ocidentais de liberdade e democracia. Talvez, se o novo governo dos EUA, os europeus e os jornalistas começassem a refletir sobre a importância dessa representação para a sustentação involuntária do projeto dos criminosos, se poderia enquadrar o terrorismo de uma forma diferente. Por exemplo, não como questão militar, mas de inteligência e de política que precisa de novos tipos de cooperação transnacional.
O senhor defende que não faz falta uma catástrofe para mudar o mundo, porque sua antecipação já é suficiente. De verdade, é tão fácil?
Basta olhar à comédia impagável que está sendo apresentada no palco mundial nestas semanas. Estou, naturalmente, falando da crise financeira. Da noite para o dia, a idéia missionária do Ocidente, a economia de mercado, colapsou. E o que está assumindo o seu lugar é um socialismo de Estado para os ricos, ao lado de um duro neoliberalismo para os trabalhadores e os pobres. Eis porque não sou completamente alarmista ao sustentar que a antecipação da catástrofe pode mudar fundamentalmente a política mundial. Porém, isso abre também uma oportunidade de reconfigurar o poder em termos de realpolitik cosmopolita.
Pode nos dar um exemplo?
Sim. Entre os tantos paralelos entre a tempestade financeira atual e os anos 30, poucos são mais importantes do que as implicações do descontentamento econômico para a segurança nacional. A Grande Depressão nos trouxe a Segunda Guerra Mundial, um cenário que não podemos repetir. Hoje, devemos reaprender que a política econômica e a externa não são domínios diferentes. Constituem, pelo contrário, um nexo estratégico, cujas interconexões podemos escolher ignorar sob nosso risco e perigo. As políticas do nacionalismo econômico devem, por isso, ser constituídas com novas regras e instituições, que evitem o protecionismo e o caos das taxas de câmbio. Só a cooperação internacional pode reavivar as economias nacionais.
Se a preocupação crescente e constante com os riscos plasma o que o senhor chama de nova conditio humana, como podemos sobreviver a eles?
Bom, eu não sou Jesus, não tenho todas as respostas, nem para as perguntas mais centrais. Mas contra a semente daquilo que ocorre, difuso sentimento de apocalipse, me pergunto: qual é o estratagema intrínseco que a sociedade mundial do risco inventou para si? Apesar de que alguns insistam em ver um excesso de reações aos riscos globais, estes têm também uma função iluminadora. Desestabilizam a ordem existente e podem também ser vistos como um passo vital rumo à construção de novas instituições; confundem os mecanismos da irresponsabilidade global e abrem-nos a uma ação política.
Já antes da crise financeira, existia um outro grave problema, o da precariedade do trabalho. Como essa moderna incerteza influi sobre a sociedade?
A “flexibilidade do mercado do trabalho” se tornou um mantra político, mais do que uma realidade. Especialmente para as gerações mais jovens, a flexibilidade significa uma redistribuição dos riscos: do Estado e da economia sobre o indivíduo. Os trabalhos disponíveis são sempre mais de breve duração e facilmente termináveis. Por isso, a “flexibilidade” significa: força e coragem, as tuas competências e o teu conhecimento são obsoletos, e ninguém pode te dizer o que tu deves aprender para que se precise de ti no futuro! Eu acho que temos que distinguir entre ansiedade (sentimento direto, concreto, urgente e pessoal, como a fome e a violência) e medo (indireto, abstrato, impessoal). A política do medo, tão necessária para se enfrentar, por exemplo, as mudanças climáticas, é minada pelas políticas da ansiedade, induzir pelo fato de se ter experimentado a insegurança laboral.
É possível que o temor de uma catástrofe futura seja o único modo para fazer com que as pessoas se comportem de um modo mais respeitoso ao ambiente? E em quanto isso aumenta as nossas ansiedades cotidianas?
Dizemos até que está se desenvolvendo um “capitalismo verde”. Partes importantes da economia global pedem uma ação política forte contra as mudanças climáticas, também como fonte para novas oportunidades de crescimento. Esses não são neo-samaritanos que agem por impulso humanitário. Porém, o consenso global sobre a proteção do clima cria novos mercados, como sempre ocorre quando um risco global é reconhecido como tal. E os princípios precavidos abraçados pelos Estados encorajam a produção com emissão zero e as tecnologias energéticas eficientes, com claras recaídas econômicas. Nesse caso, a antecipação de uma catástrofe futura pode ensinar não tanto as pessoas, mas os governos e as empresas a abrir novas estradas a serem conquistadas. Porém, há razão quando se pergunta se as pessoas estão prontas, e até que ponto, a um estilo de vida mais ambientalista. É uma pergunta ainda em aberto.
Voltemos ao risco financeiro. Como ele está minando a confiança em nós mesmos?
Procurando olhar por outro ângulo, existem dois cenários que se devem considerar. No primeiro, 2009 será “só” o ano de uma grave recessão mundial com todas as suas implicações sociais e políticas, como a radicalização de desigualdades sociais dentro e entre as nações, altos níveis de desemprego, novos tipos de lutas de classe e assim por diante. Mas o ponto central desse cenário soft é que, depois de um ou dois anos, a economia mundial irá se estabilizar, e o mundo aparecerá de novo como era antes. Pelo contrário, o segundo cenário é o seguinte: em 1989, o mundo experimentou a queda do comunismo. Vinte anos depois, o do capitalismo. A fé no livre mercado é o que fez do Ocidente o Ocidente. Em teoria, pelo menos, quanto menos intervenção do governo havia, melhor: o mantra é que os mercados sabem disso mais do que todos. Esse refrão justifica a nossa repulsão pelo comunismo, a distância filosófica com o sistema chinês e a abordagem reformista das sociedades modernas, seja em se tratando de mercado de trabalho como de universidades. E é aqui que se coloca a fundamental dissolução da identidade e da racionalidade ocidental: poderemos confiar de novo no mercado? O que nos salvará dos seus desastres internos, senão a própria ruína? Alguns dizem isso, e seria necessário ter bom senso: banqueiros, especialistas, ministros do tesouro, os primeiros responsáveis desse caos! Mas não é como pedir a Bin Laden que organize a guerra contra o terrorismo?
A última mas não menos importante instabilidade se refere à afetividade. Há muitos anos, o senhor escreveu "Il normale caos dell´amore". Podemos dizer que as relações sentimentais também são vítimas da Risikogesellschaft?
As pessoas se casam por amor e se divorciam porque ainda o desejam. As relações são vividas como se fossem intercambiáveis, não porque queremos nos libertar do peso do amor, mas porque a lei do amor verdadeiro o exige. A batalha cotidiana entre os sexos, turbulenta ou muda, dentro ou fora do casamento, é talvez a medida mais vívida da fome de amor com a qual nos atacamos uns aos outros. “Paraíso agora” é o grito daqueles seres terrenos que encontram o paraíso ou o inferno aqui ou em nenhuma outra parte. Muitos provaram que liberdade mais liberdade não é igual a amor, mas, mais provavelmente, a algo que o ameaça. Dito isso, os enamorados não são vítimas, mas protagonistas agentes da Risikogesellschaft. O risco, a previsível catástrofe do amor, quem deseja perdê-lo?
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