Olha esta água, que é negra como tinta.
Posta nas mãos, é alva que faz gosto;
Dá por visto o nanquim com que se pinta,
Nos olhos, a paisagem de um desgosto.
(Quintino Cunha)
Estamos iniciando o planejamento da 2ª fase do Projeto-Aventura ‘Desafiando o Rio-Mar’. Com o objetivo de iniciar uma metódica preparação intelectual sobre nossa próxima jornada, no rio Negro, no final do ano, vamos publicar uma série de artigos que visam apresentar aos leitores um pouco, dos mistérios e encantos dessa jóia de águas negras. A descida do ‘Rio Negro’, de caiaque, é, também, uma homenagem ao importante escritor da literatura brasileira, Euclides da Cunha, no ano do centenário da sua morte. Euclides foi covardemente assassinado em 15 de agosto de 1909, aos 43 anos de idade.
- Projeto-Aventura ‘Desafiando o Rio Mar’ - 2ª Fase
Percorremos todo o Rio Solimões, de Tabatinga a Manaus, num percurso que superou os 1700 quilômetros, tendo em vista a exploração de afluentes, paranás, furos e lagos ao longo de sua calha. Não atingimos o Mar, como o próprio nome do projeto indica, mas resolvemos que, antes de atingi-lo, devemos percorrer o quarto maior rio brasileiro em vazão: o Rio Negro. Estamos na fase de planejamento e treinamento sem uma data marcada para o início da jornada, tendo em vista que ainda não dispormos dos recursos necessários, da ordem de R$30.000,00 para a execução do projeto.
- Alexandre Rodrigues Ferreira
Rodrigues Ferreira, considerado um dos mais destacados naturalistas luso-brasileiros, nasceu em 27 de abril de 1756, na Cidade da Bahia, onde foi ordenado aos 20 de setembro de 1768, segundo a vontade de seu pai que o havia destinado à vida eclesiástica. Em julho de 1770, com 14 anos, chega ao porto de Lisboa, como candidato à Universidade de Coimbra. Bacharelou-se, aos 22 anos, em julho de 1778, em Filosofia Natural e Matemática, recebendo meses depois o título de doutor, tornando-se segundo Guilherme Maurício Souza Marcos de la Penha ‘o primeiro brasileiro em quem se reconhecem todas as características do cientista’. Em Coimbra, como assistente e discípulo do naturalista italiano, radicado em Portugal, Domenico Agostino Vandelli, titular de Ciências Naturais, exerceu a função de Demonstrador de História Natural.
- A ‘Viagem Filosófica’ (1783/1792)
A ‘Viagem Filosófica’ foi concebida, em 1778, pela Academia das Ciências de Lisboa, pelo ministro Martinho de Melo e Castro, do Ministério da Marinha e Negócios Ultramarinos e planejada por Vandelli. Em decorrência de seu excelente desempenho na Faculdade de Filosofia foi nomeado, pela Rainha D. Maria I, como ‘o primeiro naturalista português’ e encarregado da expedição científica denominada ‘Viagem Filosófica’, o maior empreendimento científico realizado no Brasil pela Coroa Portuguesa em todo período colonial. Sua tarefa era de percorrer as possessões ‘com a laboriosa comissão de ele ser o primeiro vassalo português, que exercitasse o nunca visto em Portugal, nem antes do feliz reinado de Sua Majestade, exercitado emprego de Naturalista’.
A rainha D. Maria I desejava conhecer melhor o centro-norte da colônia com a finalidade de implementar medidas que possibilitassem dinamizar a exploração econômica e a posse das áreas em litígio. Cinco anos decorreram desde a indicação até a efetivação do empreendimento. Pouco antes da partida, a expedição sofreu um corte considerável nos equipamentos e componentes. A equipe, de matemáticos, químicos, militares e professores, ficou reduzida a um grupo composto de um naturalista, um botânico, Agostinho do Cabo, e dois desenhistas, José Codina e José Joaquim Freire. Agostinho do Cabo e José Codina sucumbiram às adversidades da mata tropical.
- A Viagem
Em setembro de 1783, o naturalista deixou o seu cargo no Museu da Ajuda e, partiu para o Brasil, aportando, em Belém do Pará, em outubro. Durante nove anos percorreu o centro-norte do país, a partir da foz do Amazonas. Subiu o rio Amazonas e o rio Negro até à fronteira com as terras de Espanha e navegou pelo rio Branco até a serra de Cananauaru. Percorreu o rio Madeira e o Guaporé até Vila Bela da Santíssima Trindade de onde seguiu para a vila de Cuiabá. Navegou pelos rio Cuiabá, São Lourenço e Paraguai.
Voltou a Belém do Pará em Janeiro de 1792 depois de percorrer as capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá numa extensão de aproximadamente 39.000 quilômetros. Ferreira inventariou os recursos naturais, pesquisou a cultura indígena, e levantou as potencialidades econômicas e o perfil dos núcleos populacionais.
- A Viagem no Rio Negro
Penetrou na embocadura do Rio Negro, em 13 de Fevereiro de 1785, e rumou até a Vila de Barcelos, situada na margem direita do rio, 496 quilômetros à montante, onde chegou no dia 2 de Março. Rodrigues Ferreira montou, aí, sua base de operações. Partiu de Barcelos a 20 de Agosto de 1785 e continuou a subir o Rio Negro, alcançando, em 14 de Novembro, a Fortaleza de São José de Marabitanas, limite extremo do domínio português. Durante o trajeto explorou diversos afluentes e visitou inúmeras povoações, recolhendo farto material de estudo. Uma semana depois retomou a Barcelos em 7 de Janeiro de 1786.
Empreendeu uma nova excursão, depois de refeito da viagem ao Alto Rio Negro. A 23 de Abril de 1786, desceu o rio, atingiu a foz do Rio Branco; subiu-o, ultrapassando a Fortaleza de São Joaquim, onde permaneceu algum tempo, convalescendo. Explorou diversos afluentes do Branco e regressou à base de operações, chegando a esta em 3 de Agosto de 1786.
Na expectativa de instruções da metrópole de além-mar, quanto à nova meta a ser atingida, permaneceu na base de Barcelos até 1788. Nesse período, realizou diversas jornadas no entorno da base, explorando as matas do Rio Negro, e determinou que o botânico Agostinho do Cabo explorasse o trecho do Solimões, até altura do primeiro pesqueiro (290 quilômetros). Finalmente, após receber determinações expressas de Portugal, deixou a expedição a Vila de Barcelos em 27 de Agosto de 1788, em direção ao Rio Madeira.
- Rio Negro (José Pereira da Silva - UERJ)
José Pereira da Silva é doutor em Lingüística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1991) e, atualmente, é professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
“Ferreira menciona mais de 60 grupos indígenas, a que faltava até mesmo a identidade lingüística, com os seus variados dialetos. E como as povoações nem sempre se constituíam de famílias da mesma origem, em cada uma delas se ouviam vozes poliglotas, interpretativas do linguajar de cada componente etnográfica. Depois, examina-lhes as superstições, os costumes, os ornatos, bailes, instrumentos de toda espécie.
Indispensáveis à história do povoamento da Amazônia são os três capítulos em que sintetiza as suas idéias a respeito da formação da variedade racial, que se elaborava naquele cenário portentoso. Outros ainda se assinalavam pela abundância de informações, como o referente à agricultura, cujo atraso atribuiu a várias causas.
Aponta com franqueza as deficiências do comércio, entravado pela ganância, pelas dificuldades de transporte e pela escassez de manufaturas. Relaciona o que vira a respeito da utilização das tartarugas para o preparo de banha e manteiga dos ovos, da cerâmica, dos tecidos de palhinhas ou fibras vegetais e da fabricação da aguardente de cana, apesar da proibição oficial.
Imbuído do imperialismo econômico metropolitano, contraria a orientação oficial, visto que em exportar das colônias as matérias primas para lhes reexportar, depois de manufaturadas, consiste o ganho real e certo; sugerindo recolher tão somente o maior número de suas produções, reservando para os braços do reino manufaturar aquelas que para lá pudessem transportar.
Tinha, em elaboração, a minuta acerca do Rio Branco, do café, do tabaco e de alguns animais, faltando-lhe folga para lhes dar a forma final e entregá-las ao copista, das quais se conhece apenas o Tratado Histórico, capítulo desenvolvido do que seria a obra completa, acompanhado de notas esparsas. As outras, ao que nos conste, perderam-se de todo, sumindo do espólio literário do naturalista.
A demora em Barcelos permitiu-lhe concluir vários ensaios iniciados e de mandar o jardineiro Agostinho Joaquim do Cabo colecionar plantas e peixes no Uaracá e no Solimões. Quando lhe chegou a desejada resolução que o afastaria para Mato Grosso, pode vangloriar-se dos serviços realizados na Amazônia”.
- Crítica à política de Colonização
Na sua visita à capitania do Rio-Negro ele identifica e aponta os erros e as dificuldades da aplicação da política de colonização dos nativos na região. Ferreira cita a resistência indígena ao processo bem como o desrespeito, às determinações legais, pelos próprios diretores das povoações.
“Esta deserção, que fazem os índios descidos sucede e sucederá sempre em quanto se não trocarem os descimentos das capitanias. Assentemos, que, si os pretos não fogem para África, donde vem, não é por falta de vontade, mas pela de meios para atravessarem tantos e tão distantes mares. Para desgostar-se um índio d’estes qualquer cousa basta, e sobeja: basta, que o diretor o advirta, que trate de fazer a sua casa, onde more; basta, que o vigário o admoeste da obrigação, que tem de aprender a doutrina para se batizar; e basta em fim, que lá de si para si chegue a desconfiar de uma ação, ou de um dito, que ele não entende; ao que tudo acresce, que si chega a ver, que adoece, ou morre algum dos companheiros, desconfia então do lugar da povoação, desconfia da qualidade do sustento, desconfia dos remédios, que lhe fazem, e dos que o fazem; e como está posto na povoação, situada na boca do rio, donde desce, sobe a dissuadir os outros, que ficarão. Em termos semelhantes está mostrando a experiência, quem nem com tê-los mui mimosos, e ainda mais guardados do que bichos de seda, nem por isso mudam de conduta; quanto a mim são galos do campo, que por mais milho que lhes deite, com dificuldade se habituam ás capoeiras.
A agricultura por conseguinte não deve ser mais distinta n’esta, do que nas outras povoações; si a maniba não fosse o seu pão, nem esta plantariam. O índio, que tem lembrança de plantar alguns pés de algodão, contenta-se de recolher tanto, quanto chegue para a sua marca; os que pensam a nosso jeito, e são por isso capazes de maior esforço para adquirirem, não param nas povoações; porque ainda que se restringe até ao espaço de seis meses o tempo de serviço, a que obrigam as portarias, na inteligência de ficarem livres os outros seis meses, para trabalharem nas suas roças, liberdade é esta, que jamais conseguem pelo ordinário; porque, pedindo-se incessantemente os índios para as diferentes expedições, que se empreendem, apenas descansam oito e nove dias, si é que descansam tanto, são de novo reconduzidos para o serviço por outros seis meses, sem lhes ficar tempo, que empreguem na economia rústica e doméstica, como devem, de obrigações ás suas famílias”.
- Napoleão Bonaparte
As amostras coletadas e o material iconográfico foram encaminhados, em diversas remessas, para o Real Gabinete de História Natural de Lisboa. Muitas das gravuras originais de José Codina e José Joaquim Freire foram copiadas e chegaram às mãos de cientistas de toda a Europa.
Na invasão de Portugal, pelas tropas de Napoleão, a coleção que já despertava a cobiça de naturalistas franceses, foi confiscada. Napoleão enviou a Portugal o naturalista Geoffroy de Saint-Hilaire “para vir buscar exemplares que julgasse necessários para completar (...) Saint-Hilaire apartou no Gabinete da Ajuda quanto lhe foi do agrado”.
Muito dessa coleção histórica se perdeu e vários desenhos originais se misturaram às duplicatas dificultando o estudo desses registros. Hoje, o que resta da coleção se encontra no Museu Bocage, em Lisboa, e a Biblioteca Nacional e Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Nessas instituições, hoje, cientistas, de todo o mundo, estão redescobrindo a Amazônia, através dos relatos e da iconografia da ‘Viagem Philosophica’.
- O esbulho Philosophico (Maria de Fátima Costa)
“Ferreira legou-nos inúmeras memórias sobre flora, fauna, minérios, populações indígenas; herbários, animais empalhados, amostras de madeiras, coleções mineralógicas, além de centenas de desenhos e aquarelas e uma riquíssima coleção etnográfica sobre populações indígenas, além de precisas informações sobre os territórios recém-ocupados pelos lusitanos na raia fronteiriça entre as duas Américas ibéricas. É evidente que esta viagem cumpriu os objetivos exigidos pelo Estado lusitano à sua empresa naturalista: parte do interior da América Portuguesa foi esquadrinhada e reconhecida.
Muito já se escreveu sobre a não divulgação dos resultados dos trabalhos desta expedição e sobre a dispersão do seu legado, iniciada com o saque perpetrado pelos franceses sob o comando do marechal Junot, em 1808, durante a penetração napoleônica na península ibérica, quando parte significativa dos trabalhos de Ferreira e seus companheiros, além de animais e herbários, passaram às mãos de Étienne Geoffroy Saint-Hilaire. Entretanto, mesmo com as significativas perdas oriundas de traslados, saques e incêndios, ainda se conserva um valioso legado em acervos de instituições portuguesas e brasileiras, que só o esforço de equipes multidisciplinares pode trazer a público; parte dele, infelizmente, em péssimo estado de conservação.
Hoje é sabido, como demonstrou Simon (1983) em seu estudo sobre as expedições portuguesas do século XVIII, que não foi somente Saint-Hilaire quem se beneficiou dos trabalhos realizados por Ferreira. Através do intenso intercâmbio que museus e jardins botânicos europeus mantinham entre si, estudiosos como o inglês Joseph Banks, o espanhol. Casimiro Gómez Ortega e mesmo Humboldt também puderam ter acesso aos materiais produzidos pelo árduo trabalho do naturalista baiano. Contudo, a maior difusão dos resultados desta Viagem Filosófica vai se dar em meados do século XIX, quando, de formas diferenciadas, trazem-se a público séries documentais e dados da biografia de Ferreira e sobre a sua empresa naturalista”.
Fontes:
COSTA, Maria de Fátima - Alexandre Rodrigues Ferreira e a capitania de Mato Grosso: imagens do interior. Brasil - Mato Grosso, 2001 - Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
FERREIRA, Alexandre Rodrigues - Viagem filosófica pelas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Brasil - Rio de Janeiro, 1971 - Conselho Federal de Cultura.
RAMINELLI, Ronald - Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira. Brasil - Rio de Janeiro, 1997 - Universidade Federal Fluminense (UFF).
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