"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

sábado, abril 11, 2009

Richard Spruce e o ‘Rio Negro’

Por Cel Eng R/1 Hiram Reis e Silva, Porto Alegre, RS, 03 de Abril de 2009

Olha esta água, que é negra como tinta.
Posta nas mãos, é alva que faz gosto;
Dá por visto o nanquim com que se pinta,
Nos olhos, a paisagem de um desgosto.

(Quintino Cunha)

Estamos iniciando o planejamento da 2ª fase do Projeto-Aventura ‘Desafiando o Rio-Mar’. Com o objetivo de iniciar uma metódica preparação intelectual sobre nossa próxima jornada, no rio Negro, no final do ano, vamos publicar uma série de artigos que visam apresentar aos leitores um pouco, dos mistérios e encantos dessa jóia de águas negras. A descida do ‘Rio Negro’, de caiaque, é, também, uma homenagem ao importante escritor da literatura brasileira, Euclides da Cunha, no ano do centenário da sua morte. Euclides foi covardemente assassinado em 15 de agosto de 1909, aos 43 anos de idade.

- Projeto-Aventura ‘Desafiando o Rio Mar’ - 2ª Fase

Percorremos todo o Rio Solimões, de Tabatinga a Manaus, num percurso que superou os 1700 quilômetros, tendo em vista a exploração de afluentes, paranás, furos e lagos ao longo de sua calha. Não atingimos o Mar, como o próprio nome do projeto indica, mas resolvemos que, antes de atingi-lo, devemos percorrer o quarto maior rio brasileiro em vazão: o Rio Negro. Estamos na fase de planejamento e treinamento sem uma data marcada para o início da jornada, tendo em vista que ainda não dispormos dos recursos necessários, da ordem de R$30.000,00 para a execução do projeto.

- Richard Spruce

Richard Spruce, médico e naturalista britânico, nasceu em Ganthorpe, no norte de Yorkshire, no dia 10 de setembro de 1817. Aos 16 anos, listou as plantas que cresciam próximas à sua casa e, aos 19, descreveu cerca de 490 espécies de floríferas locais. Lecionou, a partir de 1839, matemática no Collegiate School, em York, onde permaneceu até o fechamento da escola em 1844. Aficionado à botânica, adquiriu considerável conhecimento sobre floríferas e briófitas no condado de Yorkshire e Teesdale, uma das regiões de maior biodiversidade do Norte da Inglaterra. Seus estudos serviram de base para a publicação de importante trabalho sobre briófitas obtendo o reconhecimento de notáveis botânicos da época. Empreendeu, apoiado por seus pares, uma expedição científica aos Pireneus, de maio de 1845 a abril de 1846. Apesar de sua saúde delicada, Spruce, conseguiu levar a bom termo a excursão de 12 meses aos Pireneus e graças a ela conseguiu complementar as 169 espécies de briófitas já descritas, trazendo dos Pirineus, 478 exemplares dentre os quais 17 espécies totalmente novas para a ciência.

- Preparativos para a viagem à América

Enquanto organizava a coleção dos Pireneus, começou a se preparar, para a viagem à América, estudando plantas exóticas no Jardim Botânico Real, Kew e no Museu de História Natural de Londres. Em 1849, decidiu viajar ao Amazonas, apoiado por Sir William Hooker, diretor do Jardim Botânico Real. Hooker concordou em vender os espécimes, coletados por Spruce, para herbários europeus com o objetivo de financiar a viagem. O principal objetivo da viagem era investigar a flora do vale do Amazonas e enviar espécimes para a coleção de Kew.

- Viagem à América

Depois de explorar a foz do rio Amazonas, viajou para a foz do Tapajós, encontrando Wallace em Santarém. Subiu o rio Trombetas até as proximidades da fronteira com a Guiana Inglesa, retornando ao Amazonas e chegando a Manaus no final de 1850. Depois de explorar a floresta nas cercanias de Manaus navegou pelo rio Negro chegando ao Orenoco pelo Cassiquiare.

Em 1852, Richard Spruce descreveu as dificuldades encontradas em São Gabriel da Cachoeira: “A casa onde estou é muito antiga. O sopé é povoado por ratos, vampiros, escorpiões e baratas; o assoalho, sendo apenas de terra, é minado por formigas saúvas, com as quais tenho tido batalhas terríveis. Uma noite, elas levaram a quantidade de farinha que eu levaria um mês para comer; depois, descobriram minhas plantas secas, e resolveram triturá-las e levá-las embora”. Neste ano Spruce encontrou, no rio Uaupés, grande quantidade de desenhos de peixes, lagartos, insetos, homens e outras imagens gravadas em seixos por tribos amazônicas.

No final de 1854 desceu o Negro e subiu o Amazonas até Tarapoto (Peru) na encosta dos Andes. Permanecendo por dois anos, armazenando grande coleção de plantas. Em 1857, desceu o rio Amazonas e depois se deslocou a pé através das florestas de Banos onde grande parte de sua carga foi perdida ou abandonada. Seis meses depois, chegou a Ambato, onde montou seu quartel-general por dois anos. Suas pesquisas em Tarapoto e na floresta de Banos, resultou na mais rica coleção de briófitas de todas as suas jornadas.

De todas as regiões exploradas, foi a do rio Negro que mais o encantou. Foi ali que coletou o maior número de espécies e gêneros desconhecidos. Segundo seus cálculos, existiriam entre cinqüenta mil e oitenta mil espécies de angiospermas na floresta amazônica; atualmente estima-se que a flora amazônica encerre oitenta mil espécies. Ainda hoje essa região é um repositório de espécies novas, não descritas, mas ainda continua sendo de difícil acesso mesmo para os botânicos modernos. É interessante imaginar como Spruce foi capaz de conduzir um programa tão longo e produtivo em uma região tão hostil, sem dispor das facilidades modernas.

- Wallace relata seus encontros com Spruce

“Pouco depois, voltamos para Santarém. Nossa antiga casa encontrava-se ocupada. Arranjamos outra, situada na extremidade da cidade. Consistia em dois pequenos cômo­dos, tendo chão de terra batida e um terreiro nos fundos. Conseguimos que uma negra velha viesse cozinhar para nós, e logo pudemos retomar nossa rotina diária. Levantávamos às seis e ficávamos arrumando as caixas e redes de insetos, enquanto a velha cozinheira preparava o café da manhã, que era servido às sete. Terminado o café, dávamos dinheiro a ela para que providenciasse as compras do almoço, e saíamos às oito para um bom lo­cal de coleta que tínhamos descoberto, situado a cerca de umas três milhas da cidade. Ali ficávamos à espreita dos insetos até por volta das duas ou três horas. O lugar era frequen­tado pela belíssima Callithea sapphira, uma das mais delicadas de todas as borboletas, e pelas diminutas, curiosas e brilhantes Erycinidae. Quando regressávamos, parávamos no Tapajós para tomar um banho, depois do que seguíamos para casa. Ali chegando, sempre havia uma deliciosa e refrescante melancia à nossa espera. Trocávamos de roupa, comía­mos e ficávamos atarefados com os insetos até de tardinha. Aí, quando o tempo refresca­va, tomávamos chá e íamos visitar ou receber a visita de nossos amigos brasileiros e ingle­ses. Entre estes, contávamos, agora também, com Mister Spruce, o botânico, que aqui chegara proveniente da cidade do Pará (Belém) pouco antes de regressarmos de Monte Alegre.

(...) Mister Spruce partira para Óbidos uma semana antes de nós, numa embarcação grande cujo proprietário se oferecera para levá-lo. Quando lá chegamos, encontramo-lo ainda de­sempacotando suas coisas, o que muito nos admirou. Disse ele que só chegara a Óbidos na noite anterior, tendo gasto dez dias numa viagem que alguns conseguem completar em um dia e uma noite! As causas do atraso segundo nos explicou, foram duas: primeiro, a falta de vento; segundo, o fato de que o proprietário da canoa não viajava à noite... O infortu­nado viajante que se aventura pela região amazônica tem que estar com o espírito prepa­rado para tais percalços.

- Hevea e Cinchona

Durante sua permanência no Peru, foi contratado pelo governo Indiano para localizar e estudar o gênero Cinchona, quinino - único antimalárico conhecido na época - e coletar sementes e mudas para cultivar essa espécie nas colônias britânicas asiáticas. Mesmo com o rígido controle das autoridades e proprietários rurais conseguiu identificar as melhores árvores, coletar as suas sementes na época adequada, compreender como cultivá-las e, exportar o material coletado. O trabalho consumiu dois anos de sua profícua existência e neste período realizou estudos e recolheu amostras na área que possuía a maior quantidade e qualidade de seu objeto de estudo - a cinchona. Enviou mais de cem mil sementes, do porto de Guaiaquil para a Índia e, em 1861, despachou 637 mudas que ele próprio havia cultivado. Graças ao seu esforço a indústria de quinino do Sudeste asiático se desenvolveu, gerando divisas importantes aos países produtores e, em contrapartida, rendendo, para Spruce, uma modesta pensão anual. Em decorrência desse trabalho milhões de vidas, no mundo inteiro, foram salvas.

- Ayahuasca

Richard Spruce, em novembro de 1852, navegando pelo Rio Negro, chegou à aldeia de Ipanoré, maloca de Urubucoará onde assistiu a cerimônia do culto Jurupari, em que os Tucanos usavam uma bebida chamada kapi’ (erroneamente grafada ‘caapi’, palavra tupi-guarani que designa gramíneas), preparada a partir de uma espécie de cipó. Spruce relata que: “os brancos que tomaram caapi na forma apropriada coincidem em seus relatos sobre as sensações obtidas sob seu efeito. A vista se altera e diante dos olhos passam rapidamente visões onde parecem combinar-se tudo o que viram ou leram sobre o esplêndido e o magnífico”. Spruce embriagou-se com ‘caxiri’ (bebida fermentada à base de macaxeira) e não chegou a provar a bebida sagrada, mas, já no dia seguinte começou a pesquisar o seu principal componente, o cipó que denominou Banistera caapi (depois Banisteriopsis caapi).

Procurando determinar seus componentes químicos despachou, em março de 1853, uma coleção de ramas do cipó para a Inglaterra, que ao ser aberta no Jardim de Kew foi considerada imprópria para a análise, por estar tomada pelo mofo. Em 1858 ele encontra a mesma planta sendo usada na tribo Guahibo, no alto Orenoco, e, logo depois, entre os Mazan e Záparos dos Andes peruanos, que denominavam-na Ayahuasca (vinho das almas ou vinho dos mortos, na língua quechua). Spruce considerava que o entendimento das crenças e práticas primitivas estava relacionado ao uso que esses povos faziam das plantas, e que essa cultura tinha de ser contextualizada dentro do ambiente natural.

- União do Vegetal (UDV)

O cipó, conhecido pela UDV como Mariri, usado em decocção com as folhas de um arbusto também nativo da Amazônia, Psychotria viridis, ou Chacrona, compõem o chá conhecido como Ayahuasca - que a UDV denomina Vegetal. A UDV considera que a classificação do Vegetal como ‘alucinógeno’ é incorreta, pois não provoca a perda do contato com a realidade, mas amplia o grau percepção da realidade. Os pesquisadores da área de Etnobotânica propõem a classificação do Vegetal como ‘enteógeno’, ou, mais comumente, como um psicoativo.

- Determinação e humildade

Spruce superava a saúde frágil e as limitações físicas com uma força de vontade e determinação fantásticas enfrentando privações e obstáculos de toda ordem. A sua visão holística, a exatidão e a meticulosa descrição de suas observações o tornam não só um notável botânico, mas também admirável antropólogo, linguista (era fluente em francês, espanhol e português), geólogo, e geógrafo, bem como perspicaz observador dos sistemas políticos e dos hábitos tribais amazônicos e andinos. Spruce contribuiu, significativamente, para a compreensão dos rituais e costumes primitivos e para o conhecimento das propriedades e usos das plantas da Amazônia.

- Retorno à Inglaterra

Em 1864, de volta à Inglaterra, levou pelo menos 30 mil plantas, além de mapas, e uma infinidade de sementes. Entre essas sementes estavam as árvores da borracha e plantas de uso medicinal. Depois de 17 anos de profícuos trabalhos na Amazônia, Spruce lamenta, “que todo o norte da América do Sul, com a Amazônia brasileira, não estivesse em mãos dos ingleses”.

Depois da morte de Spruce, Wallace editou suas ‘Notas de um botânico no Amazonas e nos Andes (1908)’, acrescentando-lhes uma introdução bibliográfica.

* Fontes:

SEAWARD, M. R. D. - Richard Spruce, botânico e desbravador da América do Sul. Brasil - Rio de Janeiro, 2000 - História, Ciências, Saúde - Manguinhos.

SPRUCE, R. - Notas de un botanico sobre el Amazonas y los Andes - Peru - Quito, 1938 - Publicaciones de la Universidad Central.

WALLACE, Alfred Russel - Viagens pelos rios Amazonas e Negro - Brasil - São Paulo, 1979 - Editora da Universidade de São Paulo.

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