Do Valor
Sem dinheiro para a saúde universal
Maria Cristina Fernandes
26/03/2010
O Supremo Tribunal Federal esticou a corda dos serviços que o SUS é obrigado a prestar. Municípios, Estados e União devem fornecer gratuitamente medicamentos de última geração comercializados no exterior que ainda não estejam na lista do SUS, custear próteses e cirurgias e até tratamentos médicos fora do país.
O julgamento, por unanimidade, deu guarita às liminares obtidas por pacientes que têm provocado o bloqueio de recursos públicos pela não prestação desses serviços. Beneficiam tanto pacientes 100% dependentes do SUS quanto aqueles cujos planos de saúde não dão cobertura a seus tratamentos. Apenas em São Paulo tramitam 25 mil ações.
A decisão, quatro dias antes da votação histórica que aprovou a reforma do sistema de saúde americano, expôs o paradoxo em que se encontra a saúde pública brasileira. O país universalizou a saúde pública 22 anos antes dos americanos, mas até hoje não foi capaz de equacionar seu financiamento.
Foi uma decisão igualmente histórica a da Constituinte de estender o direito à saúde pública, antes restrito apenas àqueles filiados à Previdência Social, a todos os brasileiros. Mas com a desvinculação, o sistema, na sua origem, já se viu privado de sua base de financiamento.
Egresso da geração de sanitaristas que pôs o SUS em pé, o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, viu a votação do Congresso americano como uma vitória do debate sobre a presença do Estado como garantidor e regulador do direito à saúde.
No Brasil o acesso universal não está mais em questão. O SUS, diz, transformou-se uma questão de Estado. Não há divergências entre tucanos e petistas sobre seus pressupostos, mas ninguém se põe de acordo sobre seu custeio e gestão.
Esse impasse foi traduzido pela derrota da CPMF e pela tramitação devagar quase parando do projeto que cria as fundações estatais de saúde. Esse projeto que estabelece contratos de gestão como aquele que administra o hospital Sarah Kubitschek, modelo que inspira Temporão.
Nos votos que derrubaram a CPMF no Senado há tanto apoiadores de José Serra quanto de Dilma Rousseff, ainda que ambos tenham se declarado, velada ou abertamente, a favor de sua manutenção. Entre os motivos que emperram a tramitação do projeto das fundações está a resistência do Conselho Nacional de Saúde, que abriga poderosos interesses corporativos.
Serra e Dilma têm menos paciência com corporações que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas nada indica que venham a ter mais habilidade que o atual presidente para reverter o placar que derrotou a CPMF, uma das maiores derrotas do governo no Congresso.
Temporão explica por que o avanço na saúde básica acelerou o ingresso do país nas doenças da modernidade, as que mais pressionam os custos do sistema. Quando o Brasil não tinha programas de saúde da família, campanhas de vacinação ou distribuição de antibióticos morria-se de doenças infecciosas.
O Brasil continua entre os campeões de mortalidade infantil e materna na América Latina, mas hoje vive-se mais e morre-se de doenças cardiovasculares e câncer, que requerem medicamentos de última geração, internações em UTI, transplantes e próteses.
São tratamentos tão custosos que os planos de saúde caem fora. Apenas um em cada cinco brasileiros pode custeá-lo. Ao fazê-lo, a classe média acredita que escapou da vala comum, mas, como demonstram os milhares de pacientes de planos de saúde que acionaram e venceram o Estado no Supremo, é no SUS que vai parar a conta.
Nos Estados Unidos, onde 15% do PIB são consumidos com saúde, os subsídios aos planos privados aprovados pela reforma de Barack Obama serão custeados, em parte, pela revisão dos gastos do Medicare, o sistema que já assiste os muito velhos ou muito pobres.
Na Europa, onde os sistemas assemelham-se mais ao SUS, o Estado custeia em média 80% do gasto com saúde. No Brasil, o gasto com saúde é metade do americano em proporção do PIB. E a maior parte desse custo (60%) é arcada pelas famílias. Não há, portanto, como onerá-las ainda mais com o custeio do sistema, mas a saída passa pelo encurtamento do fosso que separa esses dois mundos.
Em parte, essa aproximação já começou a ser feita pela exigência de que os hospitais – entidades filantrópicas por lei – devolvam em prestação de serviços a pacientes do SUS as deduções fiscais a que têm direito.
Outra medida, que avançou muito menos, é a exigência de que os planos ressarçam o Estado pelo uso que seus segurados fazem dos hospitais públicos.
Uma terceira medida é o envolvimento de setores industriais que causam dano à saúde no financiamento do sistema público. O ministro Temporão cita nominalmente a indústria de agrotóxicos, cigarros, bebidas e automobilística. Diz que o clima depois da derrota da CPMF não permitiu que uma discussão sobre as alternativas de financiamento prosperasse. E espera que num próximo governo, quando já deve ter voltado para a Fiocruz, o debate seja retomado.
Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras
E-mail: mcristina.fernandes@valor.com.br
Se a legislação que faz maior taxação sobre as grandes fortunas já tivesse ocorrido, esse excedente do imposto poderia minimizar o impacto do déficit das contas públicas destinadas à saúde. Na realidade outras tantas verbas que sofrem desvio poderiam resolver tal situação.
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