"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

terça-feira, março 23, 2010

Viagem de Spix e Martius pelo rio Negro

Por Hiram Reis e Silva, Cidreira, RS, 01 de março de 2010.

“... nem essa aprazível mata animada por quase pássaro algum, mas apenas por muito poucos macacos ... A isso juntam-se o silêncio e a uniformidade da floresta, a cor da negra da água, o que torna melancólica a viagem e só favorece a meditação”. (Spix e Martius)


- Martius e Spix

“Em 1817 navegou pelo Amazonas o botânico alemão Karl Friedrich Philipp von Martius, membro da Academia de Ciências da Baviera. Com seu compatriota Johann Baptist von Spix, estava agregado à Missão científica austríaca, que em 1817 veio ao Brasil, incentivada pela princesa D. Leopoldina, pouco tempo antes casada com D. Pedro l. Depois de percorrerem grande extensão do território brasileiro, os dois renomados cientistas viajaram a Belém.

Dali subiram o leito do Amazonas, até a cidade de Tefé, onde se separaram: Spix seguiu pelo leito do Solimões, até o Peru, enquanto Martius navegou pelo rio Japurá-Caquetá, atingindo os Andes em 1820. Depois de um ano, eles se reencontraram em Manaus. Em 18 de setembro de 1819, diante da cidade de Santarém, por ocasião de uma tempestade que quase chegou a destruir sua embarcação no meio do rio, Martius foi salvo milagrosamente. Nessa ocasião fez uma promessa, que cumpriu 27 anos mais tarde. Em 1846, doou uma estátua em tamanho natural de Jesus Crucificado, de ferro fundido, que veio da Baviera e se encontra no altar da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Santarém, Pará.

Além de botânico competente e minucioso, durante os três anos em que permaneceu no Brasil, Martius desenvolveu importantes estudos sobre a farmacopéia vegetal e a etnologia da Amazônia. Deixou o maior tratado jamais escrito sobre as palmeiras; brindou-nos também com os diários da expedição e com acurados estudos sobre música e lingüística dos índios brasileiros (Arara, Munducurus, Miranhas e Puris - todos hoje extintos). Em sua volta, transportou para a Europa 1.500 objetos indígenas. Escreveu um romance, e a sua inigualável 'Flora Brasiliensis', constituída de mais de 40 volumes sobre as plantas do Brasil, demorou 18 anos para ser concluída. A expedição de Martius, mudou não apenas a vida do botânico, mas a própria história da ciência no Brasil. Para que bem se avalie o que para nós representa a expedição bávara é interessante observar o que diz Roquete Pinto: ‘Caminhai um pouco pelo Brasil, estudai-lhe a terra, as plantas, os animais, a gente, e encontrareis, a cada passo, as pétalas que Martius atirou em nosso caminho’. Martius ficou conhecido como ‘O amigo das palmeiras’.” (Brasil)

- Descendo o Rio Negro

Desde o primeiro dia de minha expedição pelo Negro, eu comparava as paisagens atuais com as imagens pretéritas do Solimões. Impossível deixar de estabelecer comparações entre as características do primeiro com as do segundo. O foco inicial de minha atenção no Negro se voltou para o silêncio das matas ciliares. A alvorada no Solimões era uma verdadeira Ode à Vida e ao Sol, carregada de sons de pássaros de todos os matizes acompanhada pelo soturno ronco gutural dos guaribas, possuía uma singular beleza que me levava e me fazia mergulhar nos mistérios e belezas da natureza. O Negro com suas ilhas e praias de incomparável beleza mais parecia um grande e belo quadro de natureza morta. As matas de menor porte do Negro não tinham a diversidade, a opulência e os frutos das do Solimões que permitiriam que os pássaros a povoassem. A torrente mais lenta causa um impacto bem menor nas margens que, por isso mesmo, guardam cicatrizes perpétuas dos gigantes da floresta tombados pelos temidos banzeiros. É interessante confrontar minhas impressões com as dos naturalistas do passado e verificar que concordamos em grande parte delas, por isso, transcrevo, abaixo, o relato de Spix e Martius a respeito.

- Spix e Martius

“O seu declive é muito pequeno, de sorte que mais parece lago do que rio corrente; porém o mais fraco vento faz levantar vagas, durando a agitação muito mais tempo do que no Solimões; se o vento é mais violento ou é mesmo temporal, o movimento das suas águas é igual ao das do mar, assustando os navegantes. Este é também o único perigo até Santa Isabel, onde começaram a aparecer no rio bancos e violentas corredeiras, e mais acima estão as cachoeiras. Neste rio, nada se tem a recear dos desabamentos de barrancos, de troncos de árvore deitados perto da margem ou boiando no rio. Também é livre de toda praga de insetos (carapanãs, piuns, maruís, mutucas, brocas e formigas), que são o flagelo do Solimões; entretanto, isso só até Santa Isabel, pois, daí em diante, até às nascentes, aparecem os piuns em enxames enormes e também não faltam as espécies branca e escarlate quase invisíveis de ácarus, o micuim, que penduram no capim e se apegam aos transeuntes, produzindo com as suas picadas uma comichão intolerável e, depois, pequenos tumores. Em contraste com o Solimões, cujas margens estão em grande parte expostas às inundações e quase sempre são pantanosas, o Rio Negro tem margens limpas, arenosas, secas e terrenos mais altos, particularmente do lado meridional, onde as terras elevadas, pedregosas, descem frequentemente em declive suave de 200 a 300 passos, numa clara margem arenosa, revestida de árvores anãs e de arbustos ralos, que é uma espécie de campo, seguindo-se logo a mata mais alta e densa. Essa mesma mata não é irregular, como a do Solimões composta por árvores pequenas e gigantescas, de arbustos, imbaúbas, palmeiras, etc, da maior diversidade de árvores e do mais variado colorido. É, ao contrário, regular; as árvores são do tamanho mediano com a uniforme tonalidade e brilho das folhas especas, como as das lauráceas, de sorte que essa floresta mais parece umas arcadas contínuas, sob as quais se pode passear a vontade. Pena é não serem essas magníficas praias semelhantes a campos, nem essa aprazível mata animada por quase pássaro algum, mas apenas por muito poucos macacos. Pelo fato de o Solimões adubar muito mais as suas margens e serem elas gordas e férteis, parecem que todos os seres vivos correm para ali. Quando navegávamos no Amazonas e Solimões, nunca nos faltava caça, e cada lanço da tarrafa nos trazia 50 a 100 peixes de diversos tamanhos. O contrário se dá nas águas escuras do Rio Negro. Nem a mata nem as águas oferecem presas, e pode-se estar a pescar o dia inteiro, sem apanhar um só peixe, a isso juntam-se o silêncio e a uniformidade da floresta, a cor negra da água, o que torna melancólica a viagem e só favorece a meditação. Também o Solimões é muito mais fresco e nele as doenças são menos malignas. Por outro lado, o clima do Rio Negro, de Airão em diante, é estranhamente mais quente, e as febres são tão malignas que matam num espaço de 3 a 4 dias, tanto que, de alguns anos para cá, se despovoaram ali quase todos os lugares. Em Carvoeiro, Moura, Barcelos, morreram e ainda morrem de febre perniciosa grande número de pessoas. Na verdade, também a extraordinária fertilidade dos Solimões faz com que, apesar de todos os carapanãs e de outras pragas, as suas povoações sejam muito mais habitada que a do Rio Negro. Nas margens pedregosas e mais secas desse último, não medram senão a mandioca, o café, o anil; e, de Santa Isabel para cima aparecem abundantes as favas de pexurim e a piaçabeira. Estes produtos prosperam aqui excelentemente, num clima para o qual parecem criados, porém até hoje pouco tem sido cultivado e utilizados. Também milho, feijão, batata doce, melancia, ananás, dão bem aqui, e as castanhas do Maranhão encontram-se em abundância; por outro lado, só se vê aparecer a salsaparrilha no interior, isto é, no Rio Padarui, e para os lados do Japurá algum cacau e baunilha, que é colhida em agosto, como também a manteiga de tartaruga, no Rio Branco. Quantos outros produtos oferecem, de seu lado, o Solimões! Afora o pixurim e a piaçaba, encontram-se neste todos os demais, e, além disso, cacau, salsaparrilha e manteiga de tartaruga em quantidade, assim como o peixe-boi e o pirarucu, que se exporta salgado até o Pará e que, ao longo do Solimões e do Rio Negro, constituem, com a farinha, o principal alimento da população. Ambos os rios tem os seus baixios mais para o lado setentrional, e o Negro, também aí, maior número de igarapés e lagos; na margem meridional destes dois rios é que se acha a maioria das povoações. Sobre tudo o que é o caso do Rio Negro acham-se Airão, Moura, Carvoeiro, Poiares, Barcelos, todas a sua margem meridional, ao passo que na setentrional, em toda esta extensão, há apenas alguns sítios, entre os quais o de Tarumá, duas léguas distantes de Barra, destacando-se o lindo panorama do Rio”.

Brasil, Altino Berthier. Desbravadores do Rio Amazonas - Brasil – Porto Alegre, 1996 - Editora Posenato Arte & Cultura.

Spix e Martius. Viagem pelo Brasil (1818/1820) – vol 3 - Brasil - São Paulo, 1981 - Editora da Universidade de São Paulo.


Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva

Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA)

Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS)

Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB)

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS)

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional

Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br

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