Morar numa terra cheia de riquezas pode ser uma condenação para um povo. É o caso do Congo. A exploração dos minérios de seu subsolo, vitais para a tecnologia, desembocou na exploração infantil e numa guerra sem fim.
A reportagem é de Oriol Güell e publicada no jornal espanhol El País, 14-12-2008. A tradução é do Cepat.
Num lugar castigado por injustiças, a mais cruel é a que obriga as crianças mineiras do leste da República Democrática do Congo a deixar a escola para escavar nas minas artesanais que proliferam nas províncias de Katanga, Kivu do Norte e Kivu do Sul. Por menos de um dólar por dia, quase nus e muitas vezes desnutridos, estes menores alimentam o mercado mundial de coltan [abreviação para columbita-tantalita], cobre, estanho e cobalto enquanto cavam ainda mais o buraco humano em que habitam.
Num país incapaz de aproveitar suas enormes riquezas naturais, uma nova geração se perde condenada a trabalhar numa idade em que, no resto do planeta, as crianças vão à escola e brincam com videogames que funcionam com minérios que eles arrancam do subsolo. “Estão presos a um círculo do qual é quase impossível sair”, assegura François Philippart, cooperador belga que está a quatro anos na província de Katanga tratando de devolvê-las a uma vida de educação e família. “Sem dinheiro para pagar a escola e sem outra forma de se manter, muitas famílias se vêem obrigadas a fazer trabalhar as crianças. Muitas vezes encontramos famílias inteiras, pais, filhos e sobrinhos, trabalhando juntos nas escavações”.
O colapso do Congo como Estado deixou muitos de seus concidadãos numa situação de extrema vulnerabilidade. Como em nenhum outro canto do mundo, neste país de 66 milhões de habitantes, tão grande quanto a Europa ocidental, torna-se evidente que viver sobre uma terra cheia de riquezas pode ser a maior das condenações para um povo e suas crianças.
1. História de um espólio. A promessa de uma terra cheia de riquezas foi o que levou Leopoldo II, rei da Bélgica, a tomar posse deste pedaço de África coberto de selvas e sulcado por caudalosos rios, em 1884. O Congo não passou a ser uma colônia a mais, mas a única propriedade particular de um monarca obstinado em extrair tanto ouro, madeira e café – entre outros produtos tropicais que a metrópole estava ansiosa para consumir – quanto fosse possível. As coisas apenas mudaram a partir de 1908, quando o Governo belga assumiu a soberania do país, e o Congo chegou à independência em 1960 com 16 milhões de habitantes e menos de 20 pessoas com ensino superior. Para onde poderia ir um país desses?, pergunta-se o jornalista Stephen Smith, correspondente na região do jornal francês Le Monde, no livro Necrologia. Porque a África morre. A resposta é que iria ao encontro de uma das ditaduras mais corruptas e selvagens que já houve num continente quase tão rico em minérios como em regimes despóticos.
Depois de cinco anos de convulsões e um golpe promovido pelos Governos dos Estados UnidosBélgica, Mobutu Sese Seko se adonou do poder no Congo em 1965, se enriqueceu tanto quanto pôde e não o largou até que Laurent Kabila, pai do atual presidente, Joseph Kabila, o expulsou do país em 1997. Mas a vida sem Mobutu não foi melhor para os congoleses, que passaram outros sete anos mergulhados numa guerra da qual participaram sete países e que, com mais de quatro milhões de mortos, foi a mais sangrenta desde a Segunda Guerra Mundial. Agora, a revolta do general tutsi Laurent Nkunda contra o Governo de Kabila ameaça pôr um fim na frágil paz que a comunidade internacional procura impor desde 2003. Nestes quase 135 anos, passaram os reis, os governos e as guerras, mas todos tiveram em comum o espólio de um país e o trabalho infantil nas minas, que financiaram os sistemas que os exploram. e da
2. O pesadelo da coltan. As novas tecnologias chegaram no final do século XX ao leste do Congo em forma de um novo minério a ser arrancado das montanhas: a coltan. O país conta com as maiores reservas mundiais conhecidas (até 80%, segundo alguns cálculos) desta estranha liga da qual se extrai a tantalita, metal de grande resistência ao calor e de propriedades elétricas que o tornam insubstituível em telefones celulares, consoles de videogames e todos os tipos de equipamentos eletrônicos. Fácil de ser extraída e muita valiosa – no começo desta década chegou a ser cotizado em mais de 700 euros o quilo –, a coltan foi o combustível que lubrificou as múltiplas facções que protagonizaram a grande guerra entre 1997 e 2003.
Com o país mergulhado num complexo conflito, com até seis facções que em certas ocasiões chegaram a lutar simultaneamente todos contra todos, milhões de pessoas se viram afastadas de suas colheitas. No momento seguinte, as mesmas minas que financiavam os grupos em luta se converteram em focos de atração para famílias inteiras que ali encontravam sua única fonte de ingressos.
Mas, o mesmo minério que permitia a subsistência era o mesmo que envenenava todo o sistema político do centro da África. O povo congolês é pobre, desnutrido e pode apresentar taxas de analfabetismo superiores a 33%, mas aqueles que estavam por trás da guerra e da exploração da coltan eram eficientes ministros, generais e políticos. Um relatório elaborado por especialistas do Conselho de Segurança da ONU em 2002 deu nome e sobrenome a dezenas de militares e governantes do Congo, Uganda, Ruanda, Burundi e Zimbábue que, perfeitamente organizados, lucraram com a exportação da coltan à Europa, Ásia e América.
A exploração da coltan se mantém ainda hoje no Congo, mesmo que tenha perdido peso devido à queda dos preços nos últimos anos. “Hoje é a cassiterita que está proporcionando os maiores casos de exploração infantil e trabalhos forçados”, explica Carina Tertsakian, da ONG Global Witness, especializada em denunciar a exploração dos recursos minerais no Congo. Este minério, do qual se extrai o estanho, componente essencial para múltiplas ligas, predomina na parte leste do Congo, a mais sacudida pela intervenção estrangeira e pelas lutas fratricidas no país.
Os preços fixados nos mercados internacionais podem ter seu impacto nas explorações minerais no Congo, mas “terá poucos efeitos práticos”, assegura François Philippart. “A cassiterita e a coltan, por exemplo, costumam ser encontrados nos mesmos lugares e, enquanto se mantiverem as estruturas de poder e os sistemas de exploração fora da lei, por milícias ou pelo próprio Exército, as crianças continuarão sendo exploradas”, acrescenta.
3. O Estado que não protege. Depois do fim da guerra, e com o apoio da comunidade internacional, o Congo teve eleições presidenciais em 2006. Abria-se, assim, um período de esperança que hoje decepcionou quase todo o mundo. Os exemplos estão em todas as partes em Goma, capital do Kivu do Norte, cidade tomada pelo Exército da República Democrática do Congo e os capacetes azuis da ONU. Assim mesmo, os rebeldes do general NkundaExército incorreram em múltiplas violações dos direitos humanos contra a população que deveria proteger, no último episódio depois da ofensiva de Nkunda em Goma, quando em sua retirada aconteceram saques, mataram dezenas de civis e violentaram milhares de mulheres. Os soldados estavam meses sem receber seu salário, que se perde nos emaranhados da corrupção dos oficiais. chegaram, em 30 de outubro passado, a apenas 10 quilômetros de seu traçado urbano. Os soldados do
As escolas do sistema público também não funcionam. “Menos da metade dos professores tem seu salário e os centros se vêem obrigados a cobrar dos alunos para pagar os demais e manter as dependências”, afirma Juanjo Aguado, do Serviço Jesuíta aos Refugiados, ONG que trata de suprir as carências da educação pública na região de Rutshuru, no Kivu do Norte. “Muitas famílias não podem pagar estas contribuições, mesmo pequenas, o que joga as crianças no trabalho infantil”, alerta Tasha Gill, da Unicef no Congo.
A violência sexual é outra grande cicatriz que machuca a infância no país. Sem as forças da ordem que as protejam nem educação com a qual cavar-se um futuro, jovens de ambos os sexos ficam expostos a todas as formas de exploração, desde as violações em massa à prostituição. “Para eles é um trauma que os marca para o resto da vida”, explica Gill. “A vergonha, as doenças sexualmente transmissíveis e o golpe brutal que sofrem desde muito pequenos em sua auto-estima fazem com que muitos casos só sejam capazes de sobreviver adotando, na idade adulta, os hábitos adquiridos de violência e falta de respeito que eles mesmos sofreram na infância”.
O Congo se encaminha para outra geração perdida, a sétima ou a oitava consecutiva desde a chegada do poder colonial. Os dados da Unicef falam de um sistema sanitário público apenas existente, de quase metade das crianças sem escolarizar, de 31% de menores de cinco anos desnutridos e de uma mortalidade infantil que ceifa um de cada doze bebês antes de atingirem o primeiro ano. Um relatório da ONG Médicos Sem Fronteiras alerta que, nas zonas de conflito, cada ano morre um de cada oito menores de cinco anos. São dados que não melhoram nas últimas duas décadas.
Enquanto isso, as crianças continuam trabalhando nas minas.
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