O sertanista Sydney Possuelo é uma voz dissonante entre os indigenistas que comemoraram a decisão do Supremo Tribunal Federal em favor da demarcação contínua da terra indígena Raposa Serra do Sol, o que deve provocar a retirada dos arrozeiros da região.
A reportagem e a entrevista é de Daniel Bramatti e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 14-12-2008.
“Não foi uma vitória”, disse Possuelo, indignado com as ressalvas feitas pelo ministro Carlos Alberto Direito, acolhidas pela maioria de seus colegas. O voto de Direito estabeleceu, por exemplo, que a construção de bases militares e estradas em reservas pode ser feita sem consulta prévia às comunidades e à Fundação Nacional do Índio (Funai).
Depois de liderar expedições que marcaram os primeiros contatos de sete povos com homens brancos, nos anos 70, Possuelo passou a contestar o próprio modelo de política indigenista que o havia transformado em celebridade no mundo da antropologia. Em vez de “civilizar” os índios isolados, concluiu, o melhor seria monitorá-los e protegê-los de longe. No fim dos anos 80, essa política acabou adotada pela Funai - órgão que Possuelo presidiu de 1991 a 1993.
Eis a entrevista.
A decisão do STF foi vista como restritiva à atuação da Funai. Como o senhor a interpretou?
Tive a impressão de que os ministros não estavam interpretando leis, mas legislando. Essa declaração de que as Forças Armadas podem entrar nas áreas indígenas quando quiserem, sem pedir licença, fere o espírito com que o Estado brasileiro reservou aquelas terras para ser o habitat e o lar dos índios - lar que, na nossa sociedade, é inviolável. Não se demarca a casa de um povo para que ela seja invadida a qualquer momento ou para que se faça uma rodovia lá dentro. Numa fazenda que esteja na faixa de fronteira o Exército vai entrar quando quiser? Vai fazer uma estrada na hora em que quiser? O que quer fazer nas terras indígenas o Estado não faria numa fazenda particular.
Na sua opinião, os índios não têm nada a comemorar?
Não houve vitória. Decidiram que a demarcação tem de ser contínua, mas isso é um fato que o Supremo apenas reconheceu. Não se pode pulverizar a terra de um povo. Imagine que você ganhe uma casa, mas a cozinha fica em um bairro e o quarto em outro. A sociedade dos brancos continua ferina e horrível contra os povos indígenas. Cada vez que se mexe na legislação, é para piorar. Nada que engravatados brancos façam nas suas reuniões vem a melhorar a condição dos índios.
Os críticos das demarcações, com base na baixa densidade demográfica das reservas, dizem que os índios têm terras demais. Como o senhor vê esse argumento?
O Estado de Roraima, por exemplo, reclama do que nunca foi dele. Quando foi criado, o Estado já continha aquelas terras indígenas, que não passam a ser indígenas somente depois de demarcadas. O que faz uma área indígena é a presença dos índios. A União apenas reconhece a existência desse habitat imemorial. Dizem que a terra é grande demais? Mas são povos que não têm um supermercado ali na esquina, a produção não está centralizada em determinada área. A vida se organiza não em torno de um único lugar, mas na beira de um rio, no alto de uma montanha, na planície onde se planta, no cemitério distante...
No aspecto econômico, os críticos vêem as reservas como pedaços do Brasil alijados do desenvolvimento.
Se a terra é destinada a um povo, e a Constituição diz que assim devemos proceder, o destino da terra deve ser dado por aquele povo. De um modo geral, os índios são tecnologicamente menos desenvolvidos que nós, mas não menos inteligentes, não menos sábios. Falar em termos econômicos me parece complicado, é como calcular se uma floresta vale mais dinheiro em pé ou derrubada. É uma maneira muito comercial de olhar o mundo. Em Roraima, com exceção de algumas tribos ianomâmis, os povos indígenas já estão há muito tempo num processo de integração com a sociedade, inclusive econômica. Eles são um dos maiores produtores de carne bovina na região. Ninguém fala disso.
O senhor tirou muitos índios do isolamento, fez uma espécie de ponte entre esses povos e a chamada civilização. Que balanço faz desse processo?
Na década de 70 nós tivemos um trabalho que coincidiu com a época do Brasil grande, do “ame-o ou deixe-o”, de toda a reconquista moderna da Amazônia brasileira, através da abertura de estradas, da criação de novos núcleos urbanos, do assentamento de trabalhadores rurais. Nessa época fiz sete contatos com grupos totalmente desconhecidos, sete povos. E foi fazendo esses contatos que aprendi a ver e a sentir os malefícios que causamos a esses povos.
A partir do marechal Rondon, em 1910, o Estado brasileiro passou a ter, como postura oficial da República, uma visão ligada ao positivismo de que esses povos precisavam ser alcançados e civilizados, para viver as benesses do progresso. E desde então cerca de 90 povos desapareceram na volúpia desenvolvimentista nacional.
Foi fazendo esse tipo de contato que mudei a política indigenista nacional. No fim de 1986, depois de anos tentando, finalmente foi aceita a filosofia de não fazer mais contatos com grupos isolados. Demarcar as terras e deixar esses povos viverem a sua vida tradicional. É a política adotada hoje pela Funai. Mas tudo isso recebe um estremecimento com a manifestação do Supremo.
Há um projeto do governo para controlar o acesso de ONGs a terras indígenas. O senhor é a favor?
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