Por que uma longa investigação da Polícia Federal sobre lavagem de dinheiro e crime organizado abalou estruturas judiciárias e do Ministério da Justiça, trazendo a sombra da demasiada proximidade do que é corrompido e do que é corruptor sobre a administração pública? Intriga, atentados ao Direito, bodes expiatórios, sacrifícios rituais e o perigo de, pela prepotência e a retórica da indignação, renovar-se o temor de Albert Camus: haverá sempre o risco do retorno da peste para sitiar nossa cidadela novamente.
1.OS ELEMENTOS
Os dias que correm entre os semestres de 2008, quando aconteceram os fatos mais notórios da Operação Satyagraha da Polícia Federal, têm de ficar bem documentados. Não só com os muitos registros na internet, misturando fatos, opiniões técnicas ou nem tanto, e especulações. Os acontecimentos que ultrapassaram os dados formalizados nos processos judiciais, que a referida operação suscitou, são aqueles que importam - no que respeita ao interesse público - restando os demais restritos à perseguição penal. Além do que nos foi apresentado como cidadãos, é preciso fazer os registros interpretativos, que assinalem as posições marcantes, com base no Direito que tem de ser aplicado, por trazer nele próprio seu elemento justificador, sua medida e sua necessidade. Trata-se, em suma, de acessar a verità effetuale percebida por Maquiavel, em sua era inquieta.
Tempos virão em que será observado o quanto as circunstâncias de agora foram emblemáticas, puseram em teste a força das instituições, a ordem das prioridades e a lucidez das políticas públicas. Como temia o poeta Thiago de Mello em relação à liberdade (que, para ele, tinha de ser simplesmente vivida), a invocação no pântano das bocas da palavra "democracia", ou do compromisso de garanti-la, com o uso de afirmações frementes, serviu muito ou apenas para abjurá-la, diante de um caso concreto, histórico, retumbante, em que a retórica jurídica foi uma veste curta para esconder a desmedida vontade de mandar ou de impor. Quando o Poder Judiciário foi buscado para servir a esse fim, desviou-se da sua legítima investidura para pretender implantar uma "escravatura da toga". Ó gloria de mandar/ ó vã cobiça... prevenira-nos Camões em seu épico.
Segundo Ortega y Gasset, Galileu Galilei escreveu: aqueles que não acreditam na corrupção deveriam ser transformados em estátuas. Supostamente, o grande físico se referia à transformação dos astros, trajetórias, massas, de tudo o que observava no céu. Mas isso, na época da Inquisição, também era referir-se a outra profunda transformação, a ideológica; mudança literal da visão do mundo. A amplitude da frase até a sua dubiedade (que comoveu Ortega quando escrevia exatamente sobre matéria política, em "Mirabeau ou O Político") se justifica a partir do adjetivo latino corruptibilis, que quer dizer transformado, alterado e corrupto. Diferente da Física - que trata da mudança dos corpos e dos estados - tanto no sentido penal como no dos costumes, corrupto é quem altera, pelo seu comportamento, o respeitável em vil, o honesto em fraude, o que é para o coletivo no que é um bem para si próprio. Há, neste último significado de apropriação indevida, mediante atos simulados, um conluio que sempre configura um certo grau de impostura. Na falsa suposição de que manda, pelo seu dever de ofício ou pelo poder de que está investido, o corrompido na verdade obedece, mediante algum tipo torpe de ganho. Aqueles que coonestam tais atos dão curso à aparência de legalidade, que pretende revestir tudo de uma noção repositória do certo-respeitável-absoluto, ícone da moral vitoriana só desfeito com a sistematização da psicanálise. Diante do estratagema, o bem jurídico protegido pela lei ou pelos códigos de conduta – na sua expressão mais técnica e estrita - foge ao nosso reconhecimento como a estrela cadente no céu. Voltando a Galileu, na dramatização de Bertolt Brecht, seu pedido não era o de que os poderosos da ordem estabelecida acreditassem nele, mas nos seus próprios olhos, mirando pelo telescópio. Então, supunha ele, as "estátuas" não ficariam em pé.
2.A SINOPSE
Por cerca de quatro anos procedeu-se a uma investigação policial, com o acompanhamento do Ministério Público e a autorização judicial para buscas, quebra de sigilos e interceptações, necessários para o descobrimento dos atos ilícitos visados. Tratava-se de um conjunto complexo de movimentações financeiras vultosas, com o uso de paraísos fiscais, para controlar companhias públicas que foram privatizadas; de evasão de divisas, lavagem de dinheiro, fraudes ao fisco, enriquecimento ilícito, tráfico de influência e corrupção ativa ou passiva.
Um banqueiro e sua mulher suspeitos desses crimes ingressaram com habeas corpus perante o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, postulando salvo-conduto, pois as investigações autorizadas pela 6ª Vara Federal de São Paulo visavam a seus interesses e pessoas. A pretensão foi denegada. Outro habeas foi interposto com o mesmo sentido no Superior Tribunal de Justiça, tendo a liminar sido negada pelo Ministro Relator. Mais uma ação de mesma natureza deu entrada no Supremo Tribunal Federal, apontando agora como autoridade coatora o Relator no STJ.
Embora a Súmula 691 da Suprema Corte disponha que: "Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do relator que, em habeas corpus requerido a Tribunal Superior, indefere a liminar", o Ministro Eros Grau recebeu a distribuição do processo HC 95009, conheceu do pedido, requisitou informações e postergou o exame da liminar pedida para depois de que fossem prestadas. Com isso, o Supremo descumpriu sua própria jurisprudência sumulada, sem expor nenhuma fundamentação, exatamente quando vem editando rapidamente súmulas vinculantes que submetem as instâncias ordinárias às suas interpretações.
Durante o recesso do STF efetivou-se a prisão temporária de alguns implicados, por cinco dias. O Presidente da Corte, Ministro Gilmar Mendes, concedeu a ordem liberatória, mas não tratou da questão do salvo-conduto. Pouco depois, o banqueiro paciente voltou a ser preso, desta vez preventivamente, tendo em conta o fato específico da tentativa de suborno a Delegado da Polícia Federal. Novo pedido adjutório foi formulado e concedido pela mesma autoridade.
Tendo em vista o teor das decisões, mais particularmente da última, a Associação dos Juízes Federais – AJUFE, a Associação dos Magistrados do Brasil – AMB, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA, a Associação Latino-Americana de Juízes do Trabalho – ALJT e a ONG Juízes Para a Democracia emitiram notas públicas de desagravo ao magistrado titular da 6ª Vara de São Paulo, posicionando-se contra qualquer atentado às suas garantias funcionais. O mesmo foi feito em duas listas de juízes nominados, uma no Estado de São Paulo, outra mais abrangente (incluindo procuradores) no Estado de Santa Catarina, totalizando pelo menos trezentos e trinta e um nomes. Também a Associação Nacional do Ministério Público Federal – ANMPF – publicou nota oficial defendendo a atuação e as garantias do Procurador da República e do Juiz Federal que atuam na 6ª Vara de São Paulo. Manifestação crítica sobre os desdobramentos judiciais do caso no STF, com a soltura dos presos, foi divulgada pela Associação dos Delegados da Polícia Federal – ADPF.
De outro lado, um grupo de advogados de São Paulo e a Associação Nacional dos Defensores Públicos pronunciaram-se em apoio às decisões do Ministro Gilmar Mendes. A AJUFER – Associação dos Juízes Federais do Rio de Janeiro levou ao STF nota pública completamente anódina, defendendo a competência da Suprema Corte e manifestando-se preocupada com as repercussões. O Presidente do STF concedeu várias entrevistas e fez declarações públicas (há notícia de algumas no site do Tribunal) antes e depois de decidir. Já o Juiz Titular da 6ª Vara, Fausto Martin De Sanctis, divulgou informação à imprensa, através da assessoria do TRF da 3ª Região, no sentido de que as deliberações de instâncias superiores foram sempre acatadas por ele e que nunca existiu ordem para qualquer monitoramento no STF.
Houve, por fim, manifestações incidentais nos meios de comunicação do Presidente da República e várias outras, pateticamente contraditórias, do Ministro da Justiça. Muitos falaram, tendo ou não tendo o que dizer; a confusão se instalou; pessoas leigas – que desejavam apenas estar bem informadas como cidadãos - de repente ficaram sem saber o que estava acontecendo. Em dado momento, parecia que o uso de algemas e a cobertura jornalística dos fatos teriam se convertido nos principais focos, passando a ser mais importantes que os próprios fatos. E logo tudo se encaminhou para o propósito de modificar de afogadilho a lei dos crimes de abuso de autoridade, para nela introduzir novos tipos e penas maiores (isso ainda não aconteceu). O Senado tratou de movimentar um projeto para a disciplina do uso de algemas (PLSen, 185/04, Senador Demóstenes Torres); pouco depois, o Supremo apressou-se na elaboração de uma súmula vinculante a respeito, tendo em conta o julgamento do HC 91952 e a nova redação do artigo 474 do CPP, dada pela Lei 11.689/2008, verbis : "Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do juri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes". Essa lei foi publicada no DOU em 10.06.2008 e seu artigo 3º determinou a entrada vigor sessenta dias depois. Os atos culminantes da Operação Satyagraha ocorreram em 07.2008.
Ocorreu ainda o afastamento do Delegado Protógenes Queiróz (que chefiou as diligências investigatórias por quatro anos), fato obscuro que é objeto de sindicância administrativa, e de exame pelo Ministério Público da hipótese de obstrução da Justiça, por parte de seus superiores na Polícia Federal.
3.O EXAME EXTERIOR DO CASO
De que trata l’affair ? Certamente é um caso amplo e continuado de corrupção, sob variados tipos penais; mas também da dificuldade do Estado brasileiro em lidar com esse problema, que gera tanta desmoralização social. Seu exame remete à pergunta: há respostas estatais possíveis para conter esse mal, ou ele é de tal modo crônico e ramificado que, ao contrário do esperado, são as pessoas que lhe dão combate as vítimas de alguma degradação ?
Não foi levantada nenhuma dúvida a respeito da existência de muitos indícios de crimes e de motivos bastantes para a investigação policial. Logo, considerados os elementos existentes para caracterizar a causa legal, o inquérito policial está justificado. Há fatos e conexões suspeitas. A iniciativa da Polícia Federal não padece de nenhum questionamento de nulidade absoluta, que seja conhecido. O controle da legalidade foi feito pari passu pelo Ministério Público. Os atos de busca e interceptação que dependiam de autorização judicial realizaram-se na forma devida. Há uma suposição segura e geral de que a ampla investigação nunca teve essência de abuso.
Um casal suspeito, levado ao temor da prisão, procurou repetidamente a Justiça.
O habeas corpus visando a um salvo-conduto era o meio processual próprio. O trânsito sucessivo das impetrações no TRF-3ªR e no STJ foi normal. Já na instância extraordinária, o Ministro Eros Grau descumpriu a Súmula 691 de sua própria Corte, sem fundamentar porque o fazia, conheceu do pedido, requisitou informações e reservou-se para decidir sobre a liminar após recebê-las.
4.AS DECLARAÇÕES PÚBLICAS
As primeiras declarações públicas, inclusive do Ministro Gilmar Mendes, surgiram quando da efetivação das prisões temporárias. Elas tiveram como alvo de crítica, principalmente (1) o uso abusivo das algemas, tido como distoante do entendimento adotado pelo STF; (2) o caráter "de espetáculo" na cobertura daqueles eventos; (3) o vazamento de informações, de modo a permitir a cobertura instantânea de parte da imprensa e (4) o quadro de "total descontrole de ações constritivas da liberdade" colocando as medidas da tutela judicial (interceptações, apreensão) em choque com as garantias democráticas.
Outras declarações foram feitas quando da segunda ordem de prisão, desta vez preventiva, com base no fato da tentativa de suborno de Delegado da Polícia Federal. Dessa vez foram mencionadas (1) a desobediência por via oblíqua da ordem liberatória do STF; (2) o monitoramento ilegal de autoridades daquela Corte; (3) a existência de juiz, ou juízes, na assessoria do Ministro Gilmar Mendes, com quem trataram – em abordagem normal - advogados dos pacientes.
Deveres dos juízes - A Lei Complementar nº. 35/79 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) foi recebida pela Constituição Federal, está em vigor com todos os dispositivos não conflitantes, e assim permanecerá até que seja editado o Estatuto da Magistratura, cujo projeto ainda está em elaboração no STF.
No art. 36, a LOMAN dispõe: "É vedado ao magistrado (...) III – manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério." O Presidente do Supremo violou frontalmente essa regra. Criticou pelos meios de comunicação a atuação do juiz de primeiro grau e da Polícia Federal, quando esta cumpria mandado ou diligência autorizados judicialmente. Nisso incorreu em injustificável ilegalidade. Ilegalidade essa que afeta a garantia ao direito fundamental do due process of law. E isso leva ao justo temor de crítica pelo jurisdicionado pois, embora seja isso o que os seus olhos vêem, parece que o Direito só emana d’Ele, e ele, erigido em Ele, é quem diz o Direito, por considerar-se a sua fonte.
Caso tivesse ocorrido o contrário (o Juiz De Sanctis criticar publicamente as intervenções do Ministro Gilmar Mendes), estaria já em curso o processo administrativo com finalidade punitiva daquele.
Algemas - Não se pode dizer que o STF tivesse firmado posição definitiva a respeito do uso legal das algemas, guardado o permissivo do CPP (art. 474, parágrafo 3º, tanto na antiga como na nova redação), que trata unicamente dos julgamentos no Tribunal do Juri.
Conforme se viu na retrospectiva acima, foi a Operação Satyagraha que despertou polêmica a respeito, dando causa a um surto de promessas e iniciativas sobre o uso adequado de algemas. As prisões realizadas ocorreram antes de entrar em vigor a Lei 11.689/2008 e não se destinavam à apresentação de preso a Tribunal de Juri.
Até então, o julgamento mais completo da Suprema Corte, com a sua exata indexação, fora aquele que se encontra no site do STF, Processo HC/89.429-1, julgado em 22.08.2006. Porém, trata-se de um pronunciamento da Primeira Turma, não do Pleno. Por ser um acórdão bastante completo, era bem previsível que viesse a ser adotado como a interpretação constante do Supremo ao longo do tempo, com a cautela e o cuidado que costumam ser característicos dos tribunais.
Quando daquele julgamento, relativamente recente em termos de jurisprudência, o Ministro Sepúlveda Pertence declarou, ao dar seu voto de acompanhamento, que – pela primeira vez – o Supremo enfrentava a questão do uso das algemas de modo sistemático e completo.
A ementa da Ministra Cármen Lucia assim dispôs: "O uso legítimo de algemas não é arbitrário, sendo de natureza excepcional, a ser adotado nos casos e com as finalidades de impedir, prevenir ou dificultar a fuga ou reação indevida do preso, desde que haja fundada suspeita ou justificado receio de que tanto venha a ocorrer, e para evitar agressão do preso contra os próprios policiais, contra terceiros ou contra si mesmo."
Do ponto de vista da técnica jurídica, não se poderia pressupor, quando das prisões ocorridas na Operação Satyagraha, a tipificação de arbitrariedade no uso universal praticado erga omnes da pulseira de contenção. Tal tipificação não existia. E ainda não existe. A Súmula vinculante que veio a ser agora editada, "Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado", é uma orientação jurisprudencial impositiva, mas para o futuro. Seu texto (por ser posterior às prisões do caso Satyagraha) será examinado em outro artigo. Por ora, não será ocioso lembrar que jurisprudência não é fonte de tipificação penal, matéria reservada à lei. Hoje, o que se tem por assentado em Direito Constitucional, é que o Supremo, como intérprete maior da Carta, reconhece e declara a inconstitucionalidade e a prevalência da declaração de direitos quanto a leis e atos normativos. Não quanto a atitudes e atos infracionais. Estes estão submetido às regras do ordenamento jurídico. Têm de ser determinados à luz do devido processo legal.
O caso do banqueiro preso (e o de um ex-prefeito de São Paulo) suscitou uma repentina, obsessiva e ressentida ira, tudo a impor urgência urgentíssima, como se o fato de algemar tivesse absorvido todo o interesse processual do caso. Convém lembrar que existia um HC no STF com pleito de salvo-conduto. Nele poderia ter sido também pedido, alternativamente, no caso de não ser concedido, que não se usassem as algemas se sobreviesse o aprisionamento. Mas não foi.
Exposição indevida - Com o uso dos meios eletrônicos, inexiste "exposição indevida" de pessoas públicas, dessas que divulgam fatos de seus negócios, de sua vida pessoal, das qualidades de que se julgam portadores, concedem entrevistas narcíseas, etc. O vaticínio de Marshall McLuhan se realizou: os media são a mensagem; o mundo é a global village. Se o fato aconteceu, se há uma situação de existência real de um acontecimento da vida em sociedade, ele pode ser divulgado. Dispositivos legais que resguardam a privacidade, o uso restrito da imagem, as situações internas vividas em família, não se aplicam ao caso aqui examinado. De outro lado, o resguardo da fonte constitui garantia ao exercício do jornalismo. O próprio Ministro Gilmar Mendes saudou o fato do pedido de prisão temporária de uma jornalista (flagrada em conversas telefônicas suspeitas com pessoas investigadas) ter sido negado pelo juízo de origem.
A mesma jornalista anunciou no jornal em que trabalha a iminência das prisões. Quem apostou na veracidade da notícia, obteve a cobertura no acompanhamento delas.
É isso o que se tem; nada mais que isso.
Monitoramento - O pretenso monitoramento de ministros do STF não guardava, na época dos julgamentos, indícios consistentes de alguma tentativa de influir neles. Foram feitas as chamadas varreduras, sem resultado concludente. Existe um serviço especializado no Supremo para cuidar disso. Depois, vieram a ser divulgados pela imprensa indicativos de escuta telefônica. Até o momento, não se conhece dado conclusivo que tenha influenciado no teor das decisões tomadas.
Por que, no curso de julgamentos (quando muito pouco se sabia a respeito), levantar uma questão dessa ordem, como se o juiz de primeiro grau devesse ser censurado publicamente e sitiado até o grau da paralisia, pelo que fez e pelo que não fez? Não seria essa sim a verdadeira "exposição pública" dolosa ?
Competência disciplinar - O Supremo Tribunal Federal não exerce atividade censória, a não ser quanto aos seus próprios integrantes. Mesmo que ocorra o strepitus fori não se encontra na sua legítima e alta competência constitucional censurar publicamente a conduta processual de magistrado dos outros graus de jurisdição. O processo punitivo é da competência estrita dos tribunais aos quais o juiz se vincula.
Juiz assessor ? – Em declarações incidentais, houve referência a cargo de juiz assessor do Presidente do STF e do CNJ. Se algum juiz em atividade faz isso, está incurso em grave ilegalidade. O magistrado não pode ser afastado do exercício de sua jurisdição, a não ser nos estritos casos previstos na LOMAN, mas nunca para prestar assessoramento. As "coortes" de áulicos desapareceram com o nome barroco. Demais disso, se o juiz-assessor recebe pelo exercício dessa função que não é dele, comete enriquecimento ilícito por acumulação vedada na Carta, a qual permite apenas acumular o cargo judicial com uma função de magistério.
Se o juiz é convocado da inatividade, ainda assim a ilegalidade se faz presente, pois o entendimento (este sim reiterado) do STF é o de que não pode haver na inatividade acumulação que seja vedada na atividade.
O resumo de todos esses tópicos indica, necessariamente, que as censuras públicas do Ministro Gilmar Mendes emitidas no caso, apontando o valor ou o desvalor de medidas jurisdicionais tomadas, foram indevidas. Serviriam melhor à justiça se tivessem sustentado teses nos autos, retirando-as "do pântano das bocas" que Thiago de Mello não suportava.
5.A PRIMEIRA DECISÃO
A decisão liberatória de 9/07/2008, adotada no HC 95.009, teve como base de fato a alteração do estado dos pacientes, de pretendentes a um salvo-conduto, pois eles foram presos. Invocando a base de direito na "inexistência de requisitos", como queriam os impetrantes; pela ausência de necessidade da prisão para a coleta de mais provas e por inexistir a justa causa, principalmente frente aos direitos e garantias individuais, o Ministro concedeu a soltura. Nos fundamentos, há uma breve notícia sobre a carência na individuação das imputações, não repetida na conclusão.
O dispositivo se baseia unicamente na "falta de fundamentos suficientes" e na "ausência de necessidade" para manter a prisão, tendo em conta o efetivo cumprimento dos principais mandados de busca.
A sentença de primeiro grau era minuciosa, estendendo-se por 175 páginas. Retiradas as longas transcrições e citações, a decisão do Presidente do STF foi curta. Lamentavelmente não apontou, embora os tenha contado, sequer um dos 88 incisos e 4 parágrafos, instituidores dos direitos individuais, que tenha sido violado em primeiro grau. Igualmente, nenhuma nulidade foi cogitada.
Contudo, a decisão tomada no HC o foi pela autoridade competente e é uma peça de autoria, revela um tipo de entendimento que caberá somente ao coletivo do STF confirmar ou modificar. Não se deve fazer crítica apreciativa de mérito fora dos autos, salvo para a história, que só se constrói no curso do tempo, fora do objetivo visado neste texto.
É muito relevante observar, ao fim, que a liberação dos presos não foi seguida pela concessão de um salvo-conduto, quanto ao prosseguimento das investigações. E a pretensão a este último constituía o pedido originário. Logo, a possibilidade de ser decretada nova prisão, por fatos e fundamentos diversos, nunca teve nenhum impeditivo prévio, fixado judicialmente.
6.A SEGUNDA DECISÃO
Nova ordem de soltura foi concedida em 11.07.2008, depois de decretada a prisão, desta vez preventiva, pela tentativa de suborno de Delegado Federal.
A decisão do Presidente do STF qualifica como "argumentos especulativos" os motivos adotados para o encarceramento. Entendendo que o magistrado de primeiro grau apenas supõe a possibilidade de interferência do banqueiro na coleta de novas provas, qualificou essa motivação como "rematado absurdo".
Embora a cena da tentativa de corrupção haja sido filmada, um dos presos tenha indicado em depoimento a intermediação em favor do banqueiro, sobrevindo a apreensão de dinheiro em valor compatível com a propina prometida, o decisum diz que "a própria materialidade do delito se encontra calcada em fatos obscuros, até agora carentes de necessária elucidação".
A apreensão de documento na casa do paciente (contendo um rol de pagamentos) foi considerada imprestável como prova de autoria, por ser ele apócrifo e conter "lançamentos vagos relativos ao ano de 2004".
Adiante, a "duvidosa idoneidade e vago significado" da prova documental foi repisado.
A partir daí, a decisão atribui ao juiz de primeiro grau o uso de "nítida via oblíqua de desrespeitar a decisão deste Supremo Tribunal Federal". Invoca o precedente do HC 94.016, relatado pelo Ministro Celso de Mello, para apontar "reiterações de decisões constritivas" daquele magistrado. Afirma que "não é a primeira vez que o Juiz Federal Titular da 6ª Vara Criminal da Subseção Judiciária de São Paulo, Dr. Fausto Martin de Sanctis, insurge-se contra decisão emanada desta Corte". Determina o envio de cópias para o TRF da 3º Região, a Corregedoria-Geral da Justiça Federal, o Conselho da Justiça Federal e para a Corregedoria Nacional de Justiça.
Diante do verdadeiro levante de juízes e de associações, relatado no início deste texto, o Ministro Gilmar Mendes recuou. Encaminhando ofício ao Presidente da AJUFE, afirmou que: "o envio de peças a órgãos jurisdicionais administrativos (sic) objetivou unicamente complementar estudos destinados à regulamentação de medidas constritivas de liberdade, ora em andamento tanto no Conselho Nacional de Justiça quanto no Conselho da Justiça Federal".
Intervenção autoritária na atividade jurisdicional - As críticas pessoais feitas pelo Presidente do Supremo ao Juiz da 6º Vara Federal de São Paulo não se compadecem com a atividade jurisdicional.
Se tivesse havido descumprimento de decisão do STF, o procedimento previsto no Regimento Interno daquela Corte seria o dos artigos 46 e 47, por desobediência. Nem o Ministro Celso de Mello, nem o próprio Ministro Gilmar Mendes procederam como ali está previsto. O primeiro desses julgadores, ao invés de censurar o Juiz De Sanctis, apenas explicitou a extensão da ordem de HC que havia deferido (de suspensão cautelar de uma ação penal). Dessa forma, não há precedente algum. Não existe nenhuma desobediência documentada.
A desqualificação de um julgador, tentada em peça processual, é ela própria auto-desqualificante; atenta, ela sim, contra o exercício jurisdicional pleno estabelecido na divisão dos Poderes.
Apreciação sumária da prova dando-lhe inidoneidade definitiva - A apreensão de um documento apócrifo não retira a validade como indício. O lugar onde foi encontrado importa. O tempo da datação pode indicar uma linha de continuidade até o presente. A regularidade do auto de apreensão preenche o requisito formal. A prova pericial posterior poderá acrescer a autenticidade e a grafoscopia, a autoria.
O depoimento circunstanciado de preso, filmado na prática de ato ilícito, não pode ser descartado definitivamente em um exame liminar. Tanto mais se o teor não foi impugnado com base em algum vício de manifestação da vontade. Não pode ser descartado definitivamente como res derelicta em um processo.
A suspeita de que o investigado venha a tentar a corrupção ativa, para interferir nas investigações, quando já existe um episódio documentado mostrando isso, não é nenhum "rematado absurdo". Esse abuso no uso da linguagem não convém à metodologia do processo penal; ele próprio é um deslize.
A retaliação pessoal – O encaminhamento de cópias da decisão do Presidente do STF para duas corregedorias está em desacordo mesmo com a explicação dada pelo Ministro Gilmar Mendes ao Presidente da AJUFE. Se o propósito fosse o de colaborar com estudos no Conselho Nacional de Justiça, por que o envio não foi feito para esse órgão. Por que escolher duas Corregedorias como destinatárias ?
O intento de intimidar o juiz de primeiro grau está claro. Essa vontade determinada superou mesmo o princípio da legalidade.
A atividade correicional se destina unicamente a retificar vícios cometidos in procedendo, nunca in judicando. Caso contrário, invadiria a competência recursal dos tribunais. Também só estes detêm poder censório, que exige processo especial e se inicia por representação fundamentada.
Supressão de instância – O banqueiro preso não foi beneficiado com salvo-conduto. Portanto, poderia ser preso novamente, por outro motivo específico não coincidente com o da primeira prisão, ainda que revelado no mesmo procedimento investigatório já deflagrado.
Foi isso o que ocorreu.
Logo, a instância recursal era o TRF da 3ª R. Da decisão dessa Corte, caberia ser formulado pleito perante o STJ. Só então, contra o último órgão, a competência decisória passaria ao STF.
O mediano conhecedor de Direito Processual sabe disso; sabe também que houve supressão de instância na segunda decisão do Presidente do STF.
Como disse bem o Procurador da República que atua na 6ª Vara Federal de São Paulo, Rodrigo de Grandi, ao suprimir-se o rito nas instâncias intermediárias, criou-se um foro especial para o banqueiro no STF.
O Brasil ficou mais desigual, pois a desigualdade da sociedade foi introjetada na estrutura do Judiciário. Com soberbo despudor, a igualdade perante a lei foi assassinada.
7. A CORRUPÇÃO SEMPRE OBCECA
É digno de uma nota final o fato de que nenhuma das decisões do Ministro Gilmar Mendes tratou da "exposição pública" dos presos, do "caráter espetacular" pelo envolvimento da imprensa, da suspeita de interceptações e do uso abusivo das algemas. Tudo isso foi mencionado a latere do exame do caso, como um pano de fundo sem finalidade visível.
Portanto, fica a pergunta: por que fazer repetidas declarações a respeito daqueles temas, como que com um propósito de desestabilizar as carreiras do juiz da causa e do delegado chefe das investigações, se isso nunca fez parte da res in judicio deducta ?
O esteio deste texto é marcar um episódio de larga repercussão, muitas implicações já sabidas, outras por saber ou não, conforme ele se desenvolva.
Esta marcação deveria ser feita por todos os que pudessem, em honra a muitos que devem ser repetidamente honrados. Para lembrar um só deles, basta invocar o nome do Ministro Ribeiro da Costa, que presidiu o Supremo ao tempo da escalada do estado de exceção. Foi eleito pelos iguais, independente da medida do mandato, até que se esgotasse o tempo da sua jurisdição. Ele manteve a lúcida defesa do direito efetivo de que todos nós precisamos para viver, sem pompas, sem algaravias, mas irrecusável na sua legítima grandeza, que tanto obceca poderosos fugazes, cuja herança é só a das suas mazelas.
O mestre Paulo Rónai lembra-nos a Sátira de Juvenal: concedes licença aos corvos e envergonhas, com as tuas censuras, as pombas.
Do episódio aqui já longamente exposto, foi tudo o que ficou.
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