“A origem absoluta não faz parte do ‘já aí’ porque ela não corresponde à emergência de uma coisa na ausência de qualquer outra coisa: nada ainda é, absolutamente nada, depois, repentinamente, alguma coisa advém. Como a ciência poderia compreender esta singularidade? Ninguém o sabe e é porque a questão da origem do Universo permanece uma questão impossível”, escreve Etienne Klein, física, filósofa das ciências e diretora do Laboratório de Pesquisa sobre as Ciências da Matéria no Comissariado da Energia Atômica (CEA). “Sejamos modestos, e admitamos que a origem do Universo – se houve alguma origem – permanece um mistério que nenhuma forma de discurso pode pretender compreender”, aconselha.
Segue o artigo de Etienne Klein publicado no jornal francês Le Monde, 21-11-2008. A tradução é do Cepat.
Uma revolução discreta ocorreu ao longo do século XX: todas as disciplinas científicas certificaram-se de que os objetos que elas estudam nem sempre foram do jeito como nós os observamos hoje.
A Terra nem sempre existiu, e a vida nem sempre esteve presente nela. As estrelas não são imutáveis: elas se formam, evoluem e se transformam. Os próprios átomos têm uma história: o Universo primordial continha partículas elementares furiosamente agitadas.
A descrição do Universo apareceu como um grande relato que se estende ao longo dos 13,7 bilhões de anos: em sua fase primordial, o Universo era muito denso e muito quente; depois, não parou de se dilatar e de esfriar, a um ritmo cuja velocidade recentemente foi possível de constatar; a aglomeração de partículas elementares engendrou, em primeiro lugar, os prótons e os nêutrons, que são os primeiros sistemas estruturados que apareceram.
Em seguida, esses primeiros tijolos se juntaram para formar os primeiros núcleos de átomos, os quais se associaram aos elétrons para formar os átomos mais rápidos; a gravitação reuniu esta matéria esparsa para formar as estrelas, cuja luz inundou pouco a pouco o Universo, e as reações nucleares que acontecem em seu interior engendraram a maioria dos núcleos atômicos, etc.
Esse relato é original, inédito, em ruptura com todas as cosmogonias tradicionais. Aliás, quem, antes da física moderna poderia tê-lo contado? Mas no prolongamento desta narrativa retrospectiva, a gente se persuade que as ciências se tornaram capazes de compreender a própria origem do Universo.
Portanto, a prudência deveria se impor. Porque quando se ouve os físicos dissertando sobre a origem desta ou daquela coisa, descobrimos que nunca é questão de gênese propriamente dito. Eles falam especialmente – e de fato somente – de genealogias, de metamorfoses, de estruturações de constituintes elementares em sistemas mais complexos.
Por exemplo, eles explicam que os átomos são filhos das estrelas, que são, por sua vez, filhas de nuvens de poeira, cuja matéria provém das fases mais quentes e mais antigas do Universo... Com outras palavras, eles nunca evocam as transições de um estado a outro, os processos que permitem compreender o aparecimento de um novo objeto, o começo de sua história.
Por mais prodigiosas que sejam, essas descrições nunca incluem um “instante zero”, menos ainda o que quer que tenha precedido ou qual poderia ser sua causa. Declinar a sucessão das metamorfoses que marcaram a evolução cósmica não equivale, portanto, a descobrir a integralidade de sua gênese. Por outro lado, a “era do Universo” evocada pelos cosmólogos não recorre à sua criação, mas somente à mais antiga etapa à qual suas equações tenham acesso.
Forçoso é comprovar que as ciências só compreendem as origens relativas, isto é, as mecânicas de emergência, os contextos da primeira aparição. Tratando-se do Universo, elas invocam sempre o centro do mundo constituído de ingredientes prévios dos quais elas devem dispor para se aproximar da questão da sua origem: esse pode ser o vazio quântico, a explosão de um buraco negro primordial ou não importa qual outro. O importante é notar que se trata sempre de alguma coisa, nunca de nada.
De repente, o começo em questão não é mais um começo ex-nihilo: como conseqüência daquilo que o precedeu, constitui antes uma conclusão. E para progredir num passo suplementar, não há outro meio que invocar um novo centro, depois um outro e assim por diante, sem nunca atingir o centro original, a mãe de todos os centros.
É por isso que a ciência persiste em tropeçar na noção de origem tomada em seu sentido absoluto, isto é, considerada como a passagem do não-ser (nada, absolutamente nada existe) ao ser (alguma coisa é). Isso decorre da necessidade, para se construir, de um “já aí”, de um ponto de partida explícito, constituído de princípios, de leis ou de objetos.
Ora, a origem absoluta não faz parte do já aí porque ela não corresponde à emergência de uma coisa na ausência de qualquer outra coisa: nada ainda é, absolutamente nada, depois, repentinamente, alguma coisa advém. Como a ciência poderia compreender esta singularidade? Ninguém o sabe e é porque a questão da origem do Universo permanece uma questão impossível.
E mesmo se futuras teorias físicas nos permitirem um dia responder a essa questão, nós nos perguntaríamos na seqüência, indefinidamente: o que está na origem das leis que estas teorias contêm? E na origem da origem dessas leis? Irônica em si mesma, a questão do começo é, pois, uma questão sem fim. Então, sejamos modestos, e admitamos que a origem do Universo – se houve alguma origem – permanece um mistério que nenhuma forma de discurso pode pretender compreender.
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