Em artigo publicado na Folha (veja o site do jornal, se você for assinante), o cientista politico Cesar Benjamin aborda o aspecto ideológico do neoliberalismo. Avalia que os defensores do livre mercado irão reformular o discurso para preservar sua essência, apesar das inconsistência do projeto neoliberal expostas pela crise financeira.
Astúcias da razão
César Benjamin
É um engano pensar que o neoliberalismo esteja morrendo. As ideologias não têm porta de saída. São infinitamente capazes de reinterpretar os fatos e assimilá-los.
O que mudará é o lugar desse pensamento na sociedade. Ele havia se tornado arrogante, reivindicando em economia a condição, epistemologicamente absurda, de pensamento único.
A idéia de que possa existir um pensamento único pressupõe que a realidade seja evidente. É uma contradição em termos: se a realidade fosse evidente, o próprio pensamento seria desnecessário; viveríamos em um mundo de meras constatações. A humanidade compreendeu há milênios que objetos, situações e relações não se deixam conhecer imediatamente. Precisam ser interpretados. Por lidar com interpretações, o pensamento está condenado à pluralidade. Nenhuma interpretação esgota o real.
Não existe, pois, pensamento único. Existe pensamento hegemônico, aquele que se torna senso comum.
Mas, como diziam alguns clássicos, a razão é astuta, quer progredir: o destino de qualquer pensamento hegemônico é atrair a mediocridade, que adora o senso comum. O esforço intelectual mais vigoroso tende a migrar para o pólo contra-hegemônico.
Quando uma corrente ousa reivindicar a condição de pensamento único, é sinal de que sua hegemonia está chegando ao fim, pois está entregue a ignorantes.
No imaginário neoliberal, o mercado é o espaço de interação de agentes que não controlam os processos de troca a ponto de impor os seus fins aos demais. Ao governo, nessa visão, cabe cuidar apenas de preservar certas condições que permitam ao mercado operar. Não deve haver futuro pensado, desejado, concertado. Fora do âmbito das empresas, não deve haver metas, pois, se a sociedade define metas, torna-se necessário intervir conscientemente nos processos econômicos. A alocação dos recursos será ótima se for produzida pelo mercado, simplesmente porque o mercado produz uma alocação qualquer, desconhecida, imprevisível, considerada ótima por critérios internos à própria teoria que o glorifica. Não importa saber se essa alocação ótima produzirá bem-estar. Esse não é um problema de economia.
Na vida real, o neoliberalismo só conseguiu produzir menores taxas de crescimento, maior desigualdade social e crises recorrentes, que culminaram na grande crise atual. Mesmo assim, repetia que era preciso dobrar a aposta, pois “o modelo ainda não foi completamente implantado”. Quantas vezes ouvimos falar em reformas de primeira geração, de segunda geração, de terceira geração? Compreende-se: sendo o livre mercado apenas um tipo ideal, incapaz de organizar toda a vida social, então, por definição, a implantação do modelo neoliberal está sempre incompleta. Tal discurso se legitima em qualquer circunstância. Os fracassos também o fortalecem, pois ele conta com uma fuga para a frente: “Isso e aquilo estão atrapalhando o mercado”. Esse argumento pode ser repetido até o infinito, pois sempre haverá instituições e práticas que “atrapalham” o mercado. Como a vida das pessoas não pode ser reduzida a operações de compra e venda, qualquer sociedade organizada transcende o mercado, qualquer uma contém e recria importantes instâncias não-mercantis, apontadas como culpadas. Mesmo hoje as evidentes inconsistências do projeto neoliberal levam os seus defensores a concluir que é preciso preservá-lo, fazendo algumas correções. A incapacidade de realizar-se é, simultaneamente, uma fraqueza do modelo, no plano da realidade, e uma fonte de seu vigor, no plano do discurso. Mantém-se em ação um moto-perpétuo. Deixamo-nos conduzir por ele durante alguns anos. Deu no que deu. Só se sai de uma ideologia por ruptura.
O que mudará é o lugar desse pensamento na sociedade. Ele havia se tornado arrogante, reivindicando em economia a condição, epistemologicamente absurda, de pensamento único.
A idéia de que possa existir um pensamento único pressupõe que a realidade seja evidente. É uma contradição em termos: se a realidade fosse evidente, o próprio pensamento seria desnecessário; viveríamos em um mundo de meras constatações. A humanidade compreendeu há milênios que objetos, situações e relações não se deixam conhecer imediatamente. Precisam ser interpretados. Por lidar com interpretações, o pensamento está condenado à pluralidade. Nenhuma interpretação esgota o real.
Não existe, pois, pensamento único. Existe pensamento hegemônico, aquele que se torna senso comum.
Mas, como diziam alguns clássicos, a razão é astuta, quer progredir: o destino de qualquer pensamento hegemônico é atrair a mediocridade, que adora o senso comum. O esforço intelectual mais vigoroso tende a migrar para o pólo contra-hegemônico.
Quando uma corrente ousa reivindicar a condição de pensamento único, é sinal de que sua hegemonia está chegando ao fim, pois está entregue a ignorantes.
No imaginário neoliberal, o mercado é o espaço de interação de agentes que não controlam os processos de troca a ponto de impor os seus fins aos demais. Ao governo, nessa visão, cabe cuidar apenas de preservar certas condições que permitam ao mercado operar. Não deve haver futuro pensado, desejado, concertado. Fora do âmbito das empresas, não deve haver metas, pois, se a sociedade define metas, torna-se necessário intervir conscientemente nos processos econômicos. A alocação dos recursos será ótima se for produzida pelo mercado, simplesmente porque o mercado produz uma alocação qualquer, desconhecida, imprevisível, considerada ótima por critérios internos à própria teoria que o glorifica. Não importa saber se essa alocação ótima produzirá bem-estar. Esse não é um problema de economia.
Na vida real, o neoliberalismo só conseguiu produzir menores taxas de crescimento, maior desigualdade social e crises recorrentes, que culminaram na grande crise atual. Mesmo assim, repetia que era preciso dobrar a aposta, pois “o modelo ainda não foi completamente implantado”. Quantas vezes ouvimos falar em reformas de primeira geração, de segunda geração, de terceira geração? Compreende-se: sendo o livre mercado apenas um tipo ideal, incapaz de organizar toda a vida social, então, por definição, a implantação do modelo neoliberal está sempre incompleta. Tal discurso se legitima em qualquer circunstância. Os fracassos também o fortalecem, pois ele conta com uma fuga para a frente: “Isso e aquilo estão atrapalhando o mercado”. Esse argumento pode ser repetido até o infinito, pois sempre haverá instituições e práticas que “atrapalham” o mercado. Como a vida das pessoas não pode ser reduzida a operações de compra e venda, qualquer sociedade organizada transcende o mercado, qualquer uma contém e recria importantes instâncias não-mercantis, apontadas como culpadas. Mesmo hoje as evidentes inconsistências do projeto neoliberal levam os seus defensores a concluir que é preciso preservá-lo, fazendo algumas correções. A incapacidade de realizar-se é, simultaneamente, uma fraqueza do modelo, no plano da realidade, e uma fonte de seu vigor, no plano do discurso. Mantém-se em ação um moto-perpétuo. Deixamo-nos conduzir por ele durante alguns anos. Deu no que deu. Só se sai de uma ideologia por ruptura.
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