O drama de Detroit
Há alguns meses, quando os sinais de crise financeira somente se insinuavam nos EUA, entre os analistas havia esperança de que seus efeitos se confinassem a Wall Street. Nem o mais pessimista poderia imaginar que a economia real do país fosse atingida da forma rápida e devastadora como agora se pode constatar. O noticiário econômico mostra um cenário desolador para alguns setores da economia norte-americana, sobretudo aqueles de produção de bens de consumo onde o crédito é essencial para sua realização no mercado. O caso do setor automobilístico é emblemático.
No dia 18 de novembro, o líder da principal organização sindical dos EUA, a UAW (United Auto Workers), ao lado dos presidentes das montadoras GM, Ford e Chrysler, unidos pelo desespero, apresentaram-se diante dos congressistas norte-americanos para convencê-los a votar a favor de um pacote de ajuda de 25 bilhões de dólares em recursos públicos, indispensáveis para evitar a quebra dessas empresas. Trata-se de um apelo pela sobrevivência das três grandes corporações automotivas e de toda sua cadeia de fornecedores e revendedores. A opção seria o pedido de falência, com riscos reais de desaparecimento das empresas no mercado. É essa a situação atual da maior economia do mundo.
A evolução da crise nos EUA tem demonstrado que os dogmas liberais acerca do papel do Estado na economia são uma ideologia para exportação. Em vez disso, o liberalismo lá funciona mais como uma conveniência a serviço do interesse nacional, e disso estavam muito cientes os empresários, sindicalistas e congressistas que se encontraram para discutir o bilionário socorro às montadoras com dinheiro do contribuinte. À parte algumas manifestações teatrais de senadores contra o ineficiente e perdulário modelo empresarial de Detroit, a audiência evoluiu para uma situação em que o socorro não viria de forma incondicional, mobilizando as montadoras a apresentarem um plano de auto-salvação. Qualquer que seja a saída honrosa, é difícil imaginar que autoridades possam largar as montadoras nacionais à própria sorte, sem ao menos uma tentativa de ajuda, após terem injetado centenas de bilhões de dólares para resgatar instituições do mercado financeiro.
As atenções então já se lançam ao cenário posterior ao socorro governamental às montadoras. É quase um consenso entre os analistas de que são escassas as perspectivas de recuperação do setor na conjuntura econômica que se projeta para o país no médio prazo. Em se confirmando essas previsões, a bilionária ajuda às montadoras terá sido um paliativo inútil e dificilmente haverá apoio dos contribuintes para investimentos públicos adicionais.
Nessa adversidade, os editoriais converteram os sindicalistas da UAW numa espécie de erva daninha do liberalismo. O país do "vire-se você mesmo para financiar seu seguro saúde e sua aposentadoria" sempre teve exceção no setor automotivo de Detroit, onde os trabalhadores acumulam acordos que hoje lhes garantem benefícios acima da média nacional, como assistência médico-hospitalar vitalícia. Como contrapartida, esses benefícios acrescentam um custo extra, estimado em média 2 mil dólares, ao preço final dos veículos produzidos pelas três grandes montadoras, roubando-lhes competitividade no mercado. Um aforismo da época da Cortina de Ferro dizia que o problema dos países socialistas era que lá a sociedade vigiava para que todos fossem pobres, em vez de todos ricos. Os debates nos EUA revelam que essa índole agora pertence ao homem capitalista norte-americano, pelo menos nas questões sociais. É o que se pode constatar pela fúria dos analistas e comentaristas contra os padrões assistencialistas conquistados pelos trabalhadores de Detroit. Parecem querer convencer a sociedade de que não haveria problemas com a GM, Ford e Chrysler caso a UAW não existisse, varrendo assim para debaixo do tapete as muitas apostas erradas dessas montadoras, cujos veículos incompatibilizaram-se com as necessidades do consumidor num momento de aumento de preços de combustíveis e de crise econômica.
Somente a precariedade das políticas sociais da maior economia do mundo explica o porquê dos trabalhadores de Detroit terem buscado proteção junto às suas empresas. As montadoras de Detroit assumiram responsabilidades sociais negligenciadas pelo Estado norte-americano e, sob esse ângulo, o estado falimentar em que se encontram pode ser interpretado também como a falência dessa política de omissão estatal. A última campanha presidencial foi um indicador da crescente insatisfação popular com essa situação. Entre seus temas centrais, esteve a deficiente política nacional de proteção social, inclusive o extorsivo e inacessível sistema privado de seguro-saúde.
Quando passar a moda de apedrejar sindicalistas, essa controvérsia deve evoluir para um debate mais sério em torno das insuficiências do sistema de assistência social dos EUA. A eleição de Barack Obama gerou expectativas de compromissos sociais e o novo governo será cobrado pelos trabalhadores do país, e não somente pela turma de Detroit que contribuiu com sua campanha. Ao expor as vulnerabilidades e contradições do modelo de capitalismo norte-americano, a atual crise econômica pode representar uma oportunidade para se encaminhar soluções de históricos problemas do país.
Enviada por Almir Américo, às 02:12 30/11/2008, de São Paulo, SP
Fonte: http://www.tie-brasil.org/noticias.php
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