Instituto Humanitas Unisinos - 05/12/08
Em abril de 2004, o mundo conheceu centenas de fotos feitas por soldados norte-americanos dentro da prisão de Abu Ghraib. As imagens eram cenas atrozes de humilhação sexual e tortura. O governo de Bush condenou os sete soldados de baixo escalão [soldados, cabos e sargentos] responsáveis diretos pelos abusos relatados nas fotos, mas pouco se soube além disso.
No entanto, para o documentarista Errol Morris o que ficava fora da moldura era ainda mais importante para entender o que havia acontecido: quem eram aqueles presos “fantasmas”?, quem matou o prisioneiro morto?, por que havia um grupo de jovens inexperientes a cargo da situação? E, fundamentalmente, o que a fantasmagórica organização chamada OAG tem a ver com tudo isso? Essas são as pistas que segue e revela Procedimento Operacional Padrão, documentário que estréia diretamente em DVD na Argentina. Segue a análise de Mariano Kairuz e publicada no jornal argentino Página/12, 23-11-2008. A tradução é do Cepat.
“De acordo com a minha experiência, muitos casos de crimes são resolvidos porque o criminoso comete alguma estupidez. Neste caso, as fotos foram a estupidez”. Quem fala é o ex-agente especial de investigações criminosas do Exército norte-americano, Brent Pack. E as fotos de que fala são aquelas tristemente célebres imagens dos abusos cometidos contra prisioneiros de Abu Ghraib por agentes desse mesmo exército, que percorreram o mundo em abril de 2004. Pack teve que analisar e classificar aquelas fotos, ver “os fatos que apresentavam, sem levar emoções nem política aos tribunais”. São fotos que dizem muito, mas que não podem contar por si mesmas a totalidade da história que contêm, que escondem e da qual revelam uma ponta. O que há para além das imagens, o que aconteceu antes e depois de alguém apertar o botão da máquina.
É provável que, ao mesmo tempo que muitos se lembram destas fotos, muito poucos saibam ou se lembrem no que deu aquele escândalo. Isto se deve em parte a que apesar de todo o estupor, de toda a indignação midiática, o caso não teve nenhuma conseqüência significativa para a política norte-americana no Iraque. Apenas sete soldados do baixo escalão foram condenados à prisão, aqueles que estavam envolvidos de maneira direta nas imagens difundidas, e que foram utilizados como bodes expiatórios pela Administração Bush; separados como “maçãs podres” – para usar a expressão utilizada no caso.
O documentarista norte-americano Errol Morris tem uma teoria a esse respeito: que as fotos não apenas não prejudicaram o exército nem o governo norte-americano, mas que, além disso, ajudaram a encobrir suas operações no Oriente Médio. Mais ainda: que desta maneira essas mesmas fotos podem ter ajudado Bush – que pediu “desculpas”, separou as maçãs podres, e seguiu adiante como se nada tivesse acontecido – a ganhar a reeleição mais tarde nesse mesmo ano.
Com o propósito de compreender cabalmente o que há por trás daquelas imagens monstruosas, Morris entrevistou cinco dos sete militares castigados no caso, e pessoas que, como Pack, trazem informações e pontos de vista para a reconstrução do contexto em que foram produzidas. Os testemunhos recolhidos são o centro de Standard Operating Procedure, o documentário que apresentou no começo deste ano no Festival de Berlim e que acaba de chegar às locadoras sob o título Procedimento Operacional Padrão. Um filme político, mas fundamentalmente um documento jornalístico valioso, Procedimento Operacional Padrão propõe também uma reflexão sobre a fotografia e sobre as idéias de verdade e verossimilhança que manejamos no dia-a-dia; nas palavras de Morris, sobre “essa tendência a confundir imagem com realidade”. Uma preocupação que acompanha desde sempre este diretor, e que desta vez lhe valeu como nunca uma infinidade de críticas e discussões em seu país.
O quadro completo
Morris se aproximou do caso quando um colaborador seu lhe chamou a atenção sobre uma entrevista que havia visto na televisão. A entrevistada era a general-de-brigada Janis Karpinski, afastada de seu cargo depois da publicação das fotos de Abu Ghraib. Naquele momento, estava planejando um filme sobre fotografia de guerra a partir de algumas imagens tomadas em 1855 na Guerra da Criméia, mas logo seu interesse ficou enfocado exclusivamente em Karpinski, a quem chamou ao seu estúdio em Masschussets, colocou uma câmera diante dela e a entrevistou durante 17 horas ao longo de dois dias.
Na tela, Karpinski dá a impressão de ser uma mulher rigorosa, que fala sem rodeios e com segurança, e termina sendo em Procedimento Operacional Padrão uma das vozes mais lúcidas. É ela quem conta, no começo do filme, como foi a visita do secretário de Defesa Donald Rumsfeld à prisão de Abu Ghraib: apenas um passeio relâmpago no qual se limitou a percorrer as selas em que Saddam Hussein enforcou em sua época dezenas de milhares de inimigos de seu regime, para em seguida retirar-se dizendo que “não necessitava ver mais nada”.
Em sua denúncia, Karpinski deixa no ar de saída a existência de uma cadeia de responsabilidades que ultrapassa a esses rapazes “muito jovens, sem preparação nem experiência de vida” que o exército deixou a cargo de seus prisioneiros de guerra numa situação caótica e desbordada, e que terminaram como únicos culpados pelo caso. A partir dali, o documentário de Morris aponta para esse quadro tanto maior quanto as milhares de fotografias postas em circulação não mostraram ao mundo.
Procedimento Operacional Padrão coloca na tela uma vez mais centenas daquelas imagens. Aí estão, entre as mais estremecedoras, a da moça que segura pela coleira um iraquiano nu e de quatro como um cachorro; a do homem, também nu e com a cabeça coberta, parado sobre uma caixa e com fios elétricos presos aos seus braços estendidos; a da moça (Sabrina Harman) que assinala, com sorriso aberto e polegar para cima, para o cadáver de um árabe. Ou essa outra em que a mesma moça da coleira (Lynndie England) exibe em postura de zeladora um prisioneiro que obrigou a se masturbar.
“Quando estas fotos vieram a público, todos estavam fascinados por uma única pergunta”, disse Morris: “A quem se pode culpar pelo que se vê nelas? É uma pergunta difícil de responder. Parte do problema das fotos é que parecem oferecer alguém a quem culpar. Todo o mundo teve automaticamente uma opinião sobre as fotos, pensou saber de que tratavam. Eu senti que não o sabia. E me surpreendeu que ninguém tivesse falado com as pessoas que as tinham feito para lhes perguntar: 'Ei, o que pensaram que estavam fazendo? O que é isto que se vê na foto?' Essa é a gênese do meu filme, que é como um filme de terror de não ficção”.
Morris não questiona a eloqüência daquelas imagens. Sabe que a sua própria existência, o seu aparecimento, já constituem algo terrível. Que a soldado Sabrina Harman concordasse em aparecer tão “alegre” apontando para um homem morto é terrível, mas, argumenta Morris, não se pode esquecer que por trás da foto houve um assassinato, e que a moça da foto não foi sua perpetradora. O cadáver, é informado no filme, pertence a um prisioneiro “fantasma”, não registrado oficialmente na prisão, que morreu durante um interrogatório. Nas mãos de quem? De alguém que trabalha para as chamadas OAG (Outras Agências Governamentais, principalmente a CIA) que operam de maneira igualmente fantasmagórica, clandestina, em Abu Ghraib. Este é o tipo de informação que, alega Morris, não se vê nas fotos.
Outra coisa que não aparece nas fotos é como a justiça marcial classifica os atos que aparecem representados nelas. Pack explica que nem todas têm o mesmo estatuto: enquanto algumas constituem um “ato criminoso”, muitas outras são simplesmente o que se chama de “procedimento padrão”. Efetivados sob a ordem de abrandar e quebrar os prisioneiros, métodos humilhantes, como o de mantê-los presos a camas ou grades em posições fisicamente dolorosas (e privados do sono), nus e com as cabeças cobertas com capuzes, não seriam atos criminosos. Segundo esta categorização, também não é o caso do homem da caixa e dos fios elétricos, já que, mesmo que o prisioneiro acreditasse o contrário, os fios realmente não estavam ligados. Por esta razão, tratou-se “apenas” de uma tortura psicológica: um mero procedimento padrão.
Contra a interpretação
Morris foi acusado de relativizar muito o nível de responsabilidade das “maçãs podres”, de “humanizá-los”. Também foi criticado por oferecer pagar alguns dos entrevistados, ainda que seja algo que nunca ocultou e que não parece ter condicionado de modo algum seus testemunhos. Além disso, questionou-se um recurso que é comum em sua forma de fazer cinema: o uso de dramatizações, que reconstituem como num filme de ficção parte do que os entrevistados relatam. Se algo pode ser repreendido nessas dramatizações é que são, acima de tudo, um recurso um pouco dissonante (para não dizê-lo diretamente, feio) no conjunto de seu filme, e que contribuem pouco ou nada para o filme, mas não se pode dizer que sejam trapaceiras: altamente estilizadas – com zooms e muita câmera lenta, além disso, acompanhadas de uma banda de música formada por Danny Elfman – nunca procuram passar por cenas reais, mas todo o tempo fica claro que são re-enactments, performances.
Morris tem seus próprios motivos para recorrer a elas em quase todos os seus filmes: “Às vezes, uma frase numa entrevista me sugere uma imagem. Em determinado momento de meu filme Sob a névoa da guerra, o ex-secretário de Estado Robert McNamara está falando de seu trabalho em segurança automotiva na Ford – painéis acolchoados, cintos de segurança – quando, de repente, inesperadamente, conta uma história sobre o lançamento de caveiras pelos vãos de escadas em Cornell. Pensei: que imagem! Inclusive quando está tratando de salvar vidas, McNamara não pode deixar de jogar coisas do céu. Por isso ‘ilustrei’ essa frase: é uma maneira de reorientar a atenção para uma idéia específica. Em Procedimento Operacional PadrãoTony Diaz descobre que o prisioneiro Al Jamadi está morto: não foi ele quem o matou, mas ajudou a mantê-lo suspenso numa posição chamada de estresse, uma espécie de crucifixão. E descreve o momento em que uma gota de sangue do prisioneiro caiu sobre o seu uniforme: por mais que dissesse a si mesmo que não estava envolvido, sabia que estava. Ilustrei esse momento com a queda de uma gota de sangue e creio que a imagem nos mergulha no dilema moral de Diaz: ainda que pensemos que não estamos envolvidos, o estamos”. fiz algo similar, mas as ilustrações dirigem a atenção para assuntos morais e perturbadores. Como quando o soldado
Críticos do Village Voice, do The New York Times e outros meios influentes tacharam-no de vulgar, de desorientado, de querer chamar a atenção. Na revista Variety se assinalou que suas entrevistas contribuíam pouco para a compreensão global do comportamento militar, “tema melhor analisado no documentário Taxi to the Dark Side” [Táxi para a escuridão, 2007], de Alex Gibney, que parte do caso da tortura e morte de um taxista afegão em 2002. No In These Times, o jornalista Michael Atkinson escreve que “(assim como) em Sob a névoa da guerra conseguia extrair do ex-secretário de Defesa Robert McNamara detalhes sobre a sua carreira sem se atrever a lhe perguntar se não deveria ser responsabilizado ao menos em parte pelas mais de dois milhões de mortes de civis na Indochina, Morris revisita o escândalo da Abu Ghraib em seu estilo classicamente míope (sic), fazendo uma investigação e reconstrução de detalhes menores, sem considerar suas implicações, seu impacto e seu contexto político mais amplo. Provavelmente, seja o único cineasta norte-americano que pode fazer filmes sobre atrocidades e que resiste a qualquer tipo de apelação ética”.
Paradoxalmente, nenhum destes críticos – e vários deles estão entre os melhores de seu país – parece ter analisado o simples fato de que Morris foi um dos poucos que levou a sério algo tão básico, que até se poderia dizer óbvio, como ir ao encontro dos protagonistas diretos das fotos que percorreram o mundo para ouvir o que eles têm a dizer a respeito. Quanto às reprovações como aquelas feitas por Atkinson, Morris as respondeu em entrevistas. “Eu não exonero os meus entrevistados. Mas as coisas nos foram dadas de maneira simplificada; parece que queremos que nos digam que esta pessoa fez isso e aquela outra aquilo, e que estão arrependidas e que pedem perdão diante da câmera. Quando fiz Sob a névoa da guerra, todos me perguntaram se McNamara estava arrependido, e porque não expressava seu remordimento no filme. O filme se constrói em boa medida sobre esses sentimentos de McNamara, mas as pessoas querem a representação de um drama moral que confirma sem ambigüidades os seus sentimentos sobre o que está bem e o que está mal”.
“Meu trabalho – segue Morris – não é fazer com que McNamara diga ‘OK, Errol, queria desculpar-me pela morte de dois milhões e meio de vietnamitas na guerra do Vietnã’. Por que deveria dizer isso para mim? Quem sou eu? Para começar, um judeu de Long Island; não sou um padre católico: não quero uma confissão. Não te quero ouvir dizer ‘sinto, sinto, sinto’. O que quero é que me permitas ver como pensas, como vês o mundo. Quero que me contes tua história”, conclui.
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