"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

terça-feira, dezembro 02, 2008

Quem poderia imaginar o fantástico rolo de papiro depois das tabuinhas de argila?

Blog do Luis Nassif - 30/11/08



"Entre escritor e leitor existem milênios de teimosia e insondáveis oceanos de sabedoria"

Os tortuosos caminhos entre o escritor e o leitor

A guerra que se trava hoje, no campo da leitura, é claramente entre papel e Internet. Não é a primeira nem será a última, pois sequer sonhamos o que surgirá no futuro. Quem poderia imaginar o fantástico rolo de papiro depois das tabuinhas de argila? Ou a deslumbrante impressão em série, desbancando a lenta fatura dos manuscritos iluminados? Quando o computador surgiu, há pouco mais de 50 anos, ninguém poderia supor que desempenharia papel tão decisivo no mundo contemporâneo, invadindo e subvertendo praticamente todas as técnicas de produção, em todos os setores da indústria, do comércio e dos serviços. Mas se estamos ainda um tanto deslumbrados com o poder dessa maquininha insignificante, isso se deve à proximidade, e até à constante evolução que alavanca o mundo virtual. Acho de uma idiotice sem tamanho a defesa intransigente de um meio contra o outro, de que o livro impresso jamais irá acabar ou de que a internet dominará todos os canais de comunicação. Ora, se nem a espécie humana, a Terra, a Via Láctea e o Universo estão garantidos, nada é imortal. Tudo isso se parece com a ladainha dos que pregavam o fim dos discos rígidos (HDs), que seriam amplamente superados pelos CDs, mais práticos, portáteis e de maior capacidade. Aconteceu o contrário: enquanto os HDs continuam firmes e fortes, os CDs foram parar no lixo, substituídos pelos DVDs e pelos pen drives, que por sua vez serão substituídos por outra mídia mais poderosa. Eu mesmo usei muito o chamado Zip Disk, mídia "avançadíssima" que quase desbancou o disquete, sendo capaz de armazenar 100 MB, isto é, cerca de 70 vezes a capacidade do disquete, que ainda não acabou mas agoniza, substituído pela velocidade da Internet e pela capacidade do pen drive. É uma bela bagunça? É. Mas antes era pior.

ESCRITAS PRIMITIVAS. Já citei aqui, de passagem, o estilo "boustrophedon", tipo de escrita grega antiga e sudárabe, em que o modo de escrever imitava um boi arando a terra: da esquerda para a direita na primeira linha, da direita para a esquerda na segunda, novamente da esquerda para a direita na terceira - e assim por diante. Pior: nessa escrita, muitas vezes as letras eram invertidas, seguindo o "caminho do boi". Havia ainda textos verticais, dificultando o já difícil. Além disso, a escrita podia ser ideográfica (cada símbolo representando uma idéia), silábica (representação por sílabas) ou fonética (com grupos de sons onomatopaicos ou não), em que os fonemas se juntavam para formar palavras.

Quando se descobriram as primeiras tabuinhas cuneiformes foi um deus-nos-acuda. Com os primeiros hieróglifos, nem se fala. Foi preciso um gênio da estatura de Champollion, sujeito de uma sorte danada, para que se conseguisse entender o que pretendiam os antigos egípcios. Nesses casos de escritas ancestrais, tudo era tentativa e erro, com alguns acertos. Milhares de eruditos se empenhavam na decifração, sendo que a sorte de Champollion se deveu à "Pedra de Roseta", calhau de 1,18m, escrito em três línguas diferentes: hieróglifo em cima, demótico no meio e grego embaixo. Durante a decifração, nosso sábio comeu o pão que o diabo amassou, mas chegou lá. Ficou mais famoso que muitos outros por causa do valor das relíquias egípcias, enquanto formas de escritas importantes permanecem obscuras, sem contar as que simplesmente sumiram, sem deixar rastros, descendentes ou sinais de qualquer tipo.

ESCRITAS ANTIGAS. Um dos tipos mais bonitos que já se inventaram foi o romano, criado pelos próprios nos primórdios da era cristã. Já na época de Cícero (106-43 a.C.), constava de vinte e uma letras, em caixa alta, usadas especialmente nos monumentos. Não é por acaso que até hoje é uma das fontes mais empregadas, tendo dado origem a uma das três famílias de tipos: sem serifa, serifada e ornamental. Sem serifa são os tipos bastão, sem arestas. Os serifados contém pontas em cima, no meio e embaixo, enquanto o resto, ou seja, os tipos que fogem desses padrões, são chamados de ornamentais, e incluem toda a parafernália tipográfica surgida principalmente com a evolução do computador.

Na Idade Média e nos conventos, a escrita dominante era a ornamental, mesmo porque os copistas deitavam e rolavam na criação de letras rebuscadas e, vamos ser francos, nem sempre privilegiando a leitura. Depois da romana quadrada, sempre belíssima, mesmo nos manuscritos iluminados, vieram a romana rústica, mais estreita, uncial, uncial artificial, romana semi-uncial, insular maiúscula, insular minúscula, carolíngia, gótica antiga e, finalmente, a gótica normal, se é que se pode chamar de normal um tipo como o gótico. De qualquer forma, essas pesquisas e essa confusão duraram bem mais de mil anos, do início da era cristã até a invenção da imprensa, a mais importante das revoluções da escrita até o advento do computador.

ESCRITAS MODERNAS. Foi com fragilíssimos tipos móveis e papel de trapos que tipógrafos, papeleiros, impressores e criadores de fontes se tornaram importantes e passaram a ter seus nomes vinculados à história da escrita. Assim surgiram Baskerville (fabricante de papel), Didot (célebre família de impressores), Garamond (criador do tipo muito usado até hoje) e uma multidão de outros personagens, desde trovadores e copistas leigos até livreiros, mecenas e inventores de ligas metálicas resistentes para moldagem de tipos.

A pesquisa em busca de tipos duráveis foi dramática. Nos primeiros tempos, uma fonte inteira era usada numa única tiragem, desgastando-se rapidamente. Com isso, o custo dos impressos era altíssimo, empatando com os manuscritos. Por outro lado, a padronização tipográfica durou séculos, incluindo o "ponto", baseado no tamanho do pé de certo rei, hoje desconhecido, sendo 144 vezes menor que o augusto sustentáculo.

Enfim, a história segue. A escrita continua, a leitura também. Os campos de batalha pelo poder, pelo lucro e pela fama mudaram de forma e conteúdo. O livro impresso briga com o livro virtual (que ainda não pegou). Grosso modo, e se meu ponto de vista vale alguma coisa, estamos assim: para textos longos (como ensaios e romances), livros impressos. Para textos curtos (poesia, especialmente), Internet. Mas nada está muito claro nem muito definido. Talvez o futuro não seja nada disto.





O escritor SEBASTIÃO NUNES escreve no Magazine aos domingos.

Publicado em: 30/11/2008

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