Na manhã de uma terça-feira no shopping Sambil, o principal centro comercial de Caracas, o importador de roupas infantis José Ramón Bargiela informava a gerente de uma loja, Carolina Reyes, que os preços subiram 10%. Ele explicou que o fabricante peruano perdeu a licença de importação concedida pelo governo da Venezuela e que a mercadoria agora chegaria pelo câmbio paralelo. Carolina argumentou que um novo reajuste prejudicaria as vendas, que já não vão bem. A negociação, presenciada pelo Valor, aponta as principais distorções da economia venezuelana: controle de importações, mercado de câmbio negro e uma inflação de quase 30% ao ano. Um cenário parecido com o Brasil dos anos 80.
A reportagem é de Raquel Landim e publicada pelo jornal Valor, 02-12-2008.
A queda dos preços do petróleo deve evidenciar nos próximos meses os problemas de gestão econômica da Venezuela e pode comprometer o crescimento do país, comandado há uma década pelo presidente Hugo Chávez. Apesar das deficiências, o Produto Interno Bruto (PIB) venezuelano avançou em média 10,8% entre 2005 e 2007, uma das taxas mais altas da América Latina, impulsionado pelo elevado gasto público, por sua vez financiado pelo petróleo a US$ 100 o barril. Em 2008, o crescimento ainda deve ficar em 6%, mas a expectativa dos analistas para o próximo ano é que a festa acabou e que o PIB deve avançar apenas 2%. "Se o preço do petróleo está alto, as distorções são disfarçadas. Caso o contrário, temos dificuldades", afirmou Asdrúbal Oliveros, diretor da Ecoanalítica.
A crise financeira global atinge a Venezuela num momento em que a economia já está desacelerando. Segundo o Banco Central da Venezuela (BCV), as vendas do comércio em volume, que excluem o efeito inflacionário, cresceram 6,7% em agosto deste ano, em relação a igual período do ano anterior, um percentual inferior aos 16% do acumulado do ano e muito abaixo dos 35% de 2007. De acordo com Arnald Moreno Fernandez, presidente da Câmara dos Centros Comerciais da Venezuela, as vendas nos shoppings centers do país devem crescer entre 10% e 15% este ano, abaixo dos 25% de 2007. Ele explica os motivos da desaceleração: a inflação corroeu a renda, o governo restringiu as importações e a liquidez caiu por conta das maiores taxas de juros.
Com um sistema financeiro pouco desenvolvido e um ambiente político conturbado, a Venezuela estaria relativamente protegida dos efeitos da turbulência. O capital especulativo não foge, porque simplesmente não entrou. Mas a crise está batendo às portas dos domínios de Chávez via preços do petróleo. A cotação média do petróleo venezuelano atingiu US$ 39 o barril na semana passada, um terço do recorde US$ 126 em julho e quase 60% abaixo da média do ano, de US$ 94, conforme o Ministério do Poder Popular para Energia e Petróleo. O petróleo venezuelano é mais pesado e, portanto, mais barato que a média mundial. Como o óleo é pago com 90 dias de atraso, a Venezuela receberá menos por sua principal riqueza a partir do início do próximo ano.
Uma queda dessa magnitude vai afetar diretamente o gasto público e a importação, duas variáveis fundamentais para a economia da Venezuela. O petróleo representa 95% das exportações e 50% do receita fiscal do país. O impacto mais imediato deve ocorrer nas compras externas. Com uma produção industrial pouco diversificada e agricultura incipiente, a Venezuela compra no exterior cerca de 70% do que consome. Para não desequilibrar a conta corrente, o país será obrigado a importar menos à medida que as receitas de exportação sejam reduzidas pela queda do petróleo. Pelas cálculos da Ecoanalítica, se a cotação média do barril ficar em US$ 48,5 em 2009, as exportações venezuelanas recuariam de US$ 87 bilhões, em 2008, para US$ 50,3 bilhões em 2009 - um tombo de 42%.
De acordo com o ex-ministro das Finanças Rodrigo Cabezas - que atualmente é um dos dirigentes do Partido Socialista Unidos da Venezuela (PSUV) - o assunto ainda está em discussão, mas, em um cenário de crise, o governo priorizará as importações de alimentos, remédios, máquinas e outros bens importantes para o crescimento da economia, por meio da Câmara de Administração de Divisas (Cadivi). Na Venezuela, desde 2003 todas as importações são autorizadas por esse órgão. Uma redução das compras externas pode ter dois impactos: escassez de produtos, como já ocorreu no início do ano, quando faltou uma série de gêneros alimentícios, e inflação. "A Cadivi vai colocar um torniquete nas importações, provocando desabastecimento e pressionando o câmbio paralelo", disse José Guerra, economista da Universidade Central da Venezuela.
O câmbio na Venezuela é fixo e cada dólar vale 2,15 bolívares. No entanto, funciona também um imenso mercado paralelo, no qual a cotação varia muito. Com a crise global, a moeda americana subiu de 3,15 bolívares para 5 bolívares no último mês nesse mercado negro. Apesar de ser proibido por lei, cambistas trocam dólares tranqüilamente nas ruas de Caracas, e as empresas utilizam o câmbio paralelo para importar os bens que não são autorizados pela Cadivi. Os preços de uma série de bens e serviços embutem essa taxa de câmbio. Se o governo restringir ainda mais as importações, mais empresas vão migrar para o dólar paralelo, desvalorizando mais o bolívar e provocando inflação. Neste ano, o índice de preços ao consumidor na Venezuela deve subir 28,4%, o mais alto da região.
A outra via de contágio é o gasto público. Com a queda dos preços do petróleo, a arrecadação proveniente dessa atividade deve recuar de 15% do PIB para 10,4%, segundo a Ecoanalítica. É uma baixa significativa, cerca de 30%, e pode representar menos US$ 20 bilhões de receitas para o orçamento público. Além disso, o governo terá que pagar as recentes estatizações de empresas promovidas em diversos setores e estimadas em US$ 12,6 bilhões. Metade desse total vence nos próximos três meses. Nos dez anos em que Chávez está no poder, o gasto público saltou de 22% do PIB, em 1998, para 27% em 2007. Somadas as despesas extra-orçamentárias, chegou a 32% do PIB no ano passado, o que significa 1 ponto percentual a mais por ano.
O governo venezuelano já começou a discutir a revisão do orçamento de 2009. No documento enviado para a Assembléia Nacional, o preço médio do petróleo estava previsto em US$ 60 por barril no próximo ano - estimativa que se tornou inviável com base nos preços atuais. Vale ressaltar que o orçamento venezuelano é historicamente feito com previsões conservadoras, entre outros motivos para reduzir o repasse do governo federal aos estados e prefeituras. Para 2008, o preço estimado era US$ 35 por barril, mas a cotação média deve chegar a quase US$ 100. A receita excedente do petróleo vai para os Fundos de Desenvolvimento (Fonden), criados por Chávez e destinados a projetos sociais e a obras de infra-estrutura.
Mesmo assim, a situação fiscal da Venezuela é confortável em 2009, e as dificuldades só devem aparecer em 2010, se os preços do petróleo se mantiverem baixos. O país está protegido por um colchão de US$ 72 bilhões, que permitirá a Chávez manter os gastos no próximo ano, esperando a recuperação dos preços do petróleo. Pouco mais da metade desse montante corresponde às reservas internacionais do país, que atingiram o recorde de US$ 39,2 bilhões em setembro, e o restante está nos fundos de desenvolvimento, nas posições em dólar da PDVSA e de outras instituições estatais, com o Banco Venezuelano de Desenvolvimento. "Se o barril se mantiver em US$ 50, a fortaleza do setor externo vai permitir manter um nível de gasto compatível com um crescimento econômico de 4% no próximo ano", afirmou o ex-ministro Cabezas ao Valor.
Luís Vicente León, da consultoria Datanalisis, concorda que o país possui "uma prancha de surfe" para atravessar a crise em 2009, mas acredita que a situação fiscal pode ser grave em 2010. Ele estima o crescimento do PIB em 2% no próximo ano, graças à queda do petróleo, mas também devido aos problemas que a economia já apresentava.
"No ano que vem vão subir os impostos, a inflação vai aumentar e quem sabe até vão desvalorizar a moeda", previu o importador Bargiela, em conversa com o Valor enquanto vendia seus produtos no shopping Sambil. Ele não é economista, mas seus temores refletem com precisão as perspectivas para a Venezuela.
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