Abordado por um ex-ministro brasileiro, um grande produtor rural argentino resumiu o drama do país vizinho: "meu caro, em todo mundo a crise gera oportunidades; na Argentina, a oportunidade gera crises". Assim é a Argentina, com uma história de governos que se sucedem fazendo tábula rasa do que realizou o anterior e capaz de ter passado pela maior bolha internacional de preços das commodities sem conseguir se preparar adequadamente para a atual crise financeira global. Essa crônica dificuldade platina impõe, agora, um dilema dramático ao Brasil, seu maior sócio e vizinho. A reportagem é de Sergio Leo e publicada no jornal Valor Econômico, 02-03-2009.
Após comandar uma reunião de três ministros brasileiros e três argentinos, pouco antes do Carnaval, o ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim, anunciou uma sucessão de reuniões para atender a interesses aparentemente irreconciliáveis: o Brasil quer maior fluidez no comércio bilateral e liberdade para praticar sua política de atração de investimentos; a Argentina argumenta que corre o risco de sufocar com a vibrante concorrência do sócio maior, pede mais controles no comércio entre os dois e quer limites para a capacidade brasileira de sorver o fluxo de investimento interessados no mercado sul-americano.
Estava marcada para a próxima quarta-feira, dia 4, uma nova reunião de autoridades argentinas e brasileiras para preparar um esboço de acerto, a ser levado aos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Cristina Kirchner, que se encontrarão em Buenos Aires, no dia 20. A reunião de autoridades, chefiada, pelo lado brasileiro, por Samuel Pinheiro Guimarães e, pelo lado argentino, por Alfredo Chiaradia, será realizada só no dia 11 ou 12. No Brasil, ainda não se sabe o que levar aos argentinos para rechaçar as sugestões de lá, de autorizar barreiras de salvaguardas a importações entre os dois sócios e estender a outros setores industriais o comércio administrado (com limites de vendas) que já existe no setor automotivo.
Amorim, ao sair da reunião com argentinos, comentou, com sinceridade, que a atual crise comercial entre os dois países é um "teste de stress" para o Mercosul, sua "hora da verdade".
Um avanço na integração regional até poderia sair desse embate: os argentinos dizem querer a criação de uma política comum de defesa comercial, com regras conjuntas para enfrentar concorrência desleal de exportadores de terceiros países. Já há, nas empoeiradas mesas de negociação do Mercosul, uma proposta nesse sentido, praticamente concluída, e nunca aprovada - porque estabelece limites estritos à aplicação de medidas de defesa comercial, num momento em que empresários dos dois países pedem mecanismos "criativos" para barrar a importação, especialmente de concorrentes asiáticos.
A reunião da semana deve tratar dessa unificação de mecanismos de defesa comercial, que terá ainda de ser discutida com os parceiros menores, Uruguai e Paraguai, bem mais liberais em matéria de importações. Mas, enquanto isso, para discreta satisfação dos adversários da união aduaneira do Cone Sul, a realidade corrói, pouco a pouco, laços comerciais consolidados entre Brasil e Argentina.
Em janeiro, a brutal queda no comércio bilateral fez com que o Mercosul caísse para a segunda colocação como principal bloco entre os parceiros comerciais da Argentina, superado pela União Europeia. Embora siga como segundo maior parceiro comercial, concorrendo de perto com a China, a Argentina vê crescer o interesse do Brasil por mercados no continente como Chile e Colômbia, que podem minar a importância dos argentinos no comércio exterior brasileiro.
Em abril, pouco depois da visita de Lula ao Chile, para o encontro de "governantes progressistas", Fiesp e Apex planejam missões prospectivas ao mercado chileno. Mais que o reduzido poder de consumo do país andino, o que se estuda é o estabelecimento de empresas brasileiras no Chile, para processamento de importações vindas do Brasil e re-exportação a algum dos países com quem os chilenos têm acordos de livre comércio. No segundo trimestre estão previstas novas missões comerciais, chefiadas pelo ministro do Desenvolvimento, Miguel Jorge, a Colômbia, Peru e Panamá.
O "teste da verdade" de Amorim se realiza num momento bem inadequado, período de eleições locais na Argentina, em que o governo Kirchner disputa sua futura base parlamentar e finca as fundações da disputa presidencial de 2011, em condições nada favoráveis. A rejeição a Cristina supera os 40% do eleitorado, a deterioração da balança comercial é preocupante, e as pressões inflacionárias geram atos desesperados como a ameaça de estatizar a comercialização de grãos na Argentina - agora substituída, aparentemente, pela ideia de se montar um trabalhoso aparato de estoques e preços reguladores para concorrer com o setor privado.
Os sinais de Brasília indicam que a missão negociadora brasileira irá a Buenos Aires com instruções para endurecer na discussão. Do lado argentino, também não se fala em recuo, por questões de sobrevivência: é grande a preocupação argentina em relação ao avassalador poder magnético do Brasil para investimentos na região. O anúncio recente da Mitsubishi, de que levaria sua fábrica do Japão ao Brasil para aproveitar o mercado do Mercosul e do continente mostra que não é só paranoia.
A Argentina também atrai investimentos, daqui: só em 2008, foi de US$ 622 milhões o valor investido pelo Brasil no vizinho - alguns desses investidores, aliás, se queixam da constante mudança de regras por parte do governo, que cria obrigações e dívidas para o setor privado. Uma medida da importância argentina para o Brasil são os financiamentos do BNDES com uso do Fundo de Garantia de Exportações, para negócios com os argentinos: US$ 618 milhões, em 15 operações aprovadas em Brasília, só em fevereiro.
Não interessa a nenhum dos dois países o conflito. Não há condições em nenhum dos dois para um acordo. Sugestões viáveis para resolver esse dilema devem ser encaminhadas a Brasília, com cópia para Buenos Aires.
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