Mais conhecido intelectual americano, nome destacado da esquerda nos EUA desde os protestos contra a Guerra do Vietnã, o linguista Noam Chomsky critica o próprio país em seu novo livro, o recém-lançado Estados fracassados (Bertrand Brasil). Fazendo uma análise detalhada das premissas que orientam as intervenções militares americanas no exterior, o livro argumenta com ironia que, pelos critérios usados pelos EUA, os próprios EUA seriam um alvo legítimo para uma invasão. Chomsky concedeu uma entrevista ao jornal Globo, 28-02-2009, sobre a obra e sobre o atual quadro político do país, prevendo que Obama deve acabar com o extremismo de Bush na política interna, mas não no conturbado front externo.
Eis a entrevista.
O senhor poderia explicar por que o conceito de “Estado fracassado”, criado pelo governo dos Estados Unidos, em sua opinião se aplica aos EUA?
Os especialistas concordam que esse conceito é vago, mas envolve três características principais: a incapacidade ou desinteresse em proteger a população; o desrespeito a leis e normas internacionais; e a existência de instituições democráticas formais, mas que funcionam apenas de forma limitada. É fácil mostrar que os EUA preenchem em boa medida os três requisitos.
O senhor enfatiza a responsabilidade dos EUA no crescimento do terrorismo islâmico, mas há quem observe que um movimento como a al-Qaeda, por exemplo, não se opõe a políticas específicas dos EUA, mas à democracia secular como um todo. O que o senhor tem a dizer sobre isso?
Há duas perguntas separadas aqui: quais são as causas do crescimento do terrorismo islâmico? E quais são os objetivos dos terroristas islâmicos? A resposta à primeira é indiscutível. O governo de Ronald Reagan, em particular, teve um papel decisivo e muito consciente na criação do terrorismo islâmico. Sua meta declarada era “matar russos”. Para atingir essa meta, o governo Reagan reuniu os maiores extremistas islâmicos que conseguiu encontrar ao redor do mundo, enviou-os para o Afeganistão, e forneceu a eles uma crucial ajuda militar. Os objetivos da al-Qaeda e de outros movimentos são uma questão separada, que não tem relação com a maneira como eles cresceram.
O senhor acredita que sob a presidência de Barack Obama os EUA continuarão a ser, em sua política externa, um Estado fora-da-lei, como o senhor diz?
Haverá mudanças de política interna, em direção a uma posição mais de centro. O extremo radicalismo do governo Bush sem dúvida será cancelado; McCain faria mais ou menos a mesma coisa. Mas na arena internacional, não há indicação de ne nhuma mudança significativa em relação ao segundo mandato de Bush, a não ser na retórica. As políticas são mais ou menos as mes mas, em alguns casos mais violentas e agressivas, como no Paquistão e no Afeganistão.
Comentando o fervor despertado pela campanha de Obama, a escritora Joan Didion observou que de repente a ironia saiu de moda nos EUA. O cinismo deu lugar à credulidade. Qual sua opinião sobre esse entusiasmo?
A resposta mais definitiva a respeito da campanha foi dada pela indústria de relações públicas, que comanda as eleições. O principal órgão deles, “Advertising Age” (“Era da propaganda”), deu a Obama o prêmio de melhor campanha de marketing do ano, derrotando os computadores da Apple. Desde Reagan os candidatos são vendidos como bens de consumo, e este é o maior caso de sucesso que os publicitários já tiveram. Quanto ao entusiasmo, Bush era tão impopular que até seu partido se lançou contra ele, um fenômeno sem precedentes; 80% do país pensam estar indo na direção errada e querem mudança desesperadamente. Por isso Obama usou os slogans “mudança” e “esperança”. O surpreendente é o quanto a margem da vitória foi pequena. Sob as circunstâncias, era de se esperar uma vitória de lavada do partido de oposição. Mas Obama ganhou por pouco — e entre eleitores brancos, McCain ganhou. Se o colapso financeiro tivesse demorado um pouco mais, McCain talvez ganhasse, apesar da performance desastrosa dos republicanos nos últimos oito anos em praticamente todos os setores.
O procurador-geral dos EUA, Eric Holder, disse recentemente que os Estados Unidos são uma nação de covardes no que diz respeito ao debate sobre racismo. A eleição de Obama não prova o contrário?
A eleição de Obama foi, sem dúvida, um evento histórico, e é muito importante ter uma família negra na Casa Branca — embora haja um tanto de racismo na ideia que esse é um momento mágico que só poderia acontecer nos EUA. As eleições na Bolívia e no Brasil foram muito mais “mágicas” em termos de mostrar como uma dura opressão pode ser vencida dentro do sistema eleitoral. O fato de os dois principais candidatos democratas à presidência serem um negro e uma mulher mostra que os EUA se tornaram um país muito mais civilizado nas últimas décadas. É um tributo ao ativismo dos 1960, mas ainda há um longo caminho pela frente, como Holder presumivelmente quis enfatizar.
Como o senhor, crítico feroz dos EUA, compararia os históricos de política externa e de direitos humanos do seu país com os da China, que para alguns está a caminho de se tornar a próxima potência global?
É muito improvável que a China substitua os EUA como principal potência global. Ela tem enormes problemas internos, desconhecidos no ocidente. Uma indicação disso é seu ranking na lista de Desenvolvimento Humano da ONU: em torno de 80o A China também enfrenta crises ecológicas severas, e embora seu crescimento industrial seja impressionante, muito dele é de capital estrangeiro, em particular nos setores mais avançados . Quanto à política externa, a China hoje é o mais pacifista dos grandes poderes. É por isso que importantes analistas americanos como John Steinbrunner têm defendido que a China lidere uma coalizão de Estados pacifistas para conter o militarismo agressivo dos EUA. Já o histórico chinês de direitos humanos é claramente horrível, muito pior do que o dos EUA.
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