O economista francês Jean-Paul Fitoussi, em artigo para o jornal La Repubblica, 23-02-2009, afirma que "para restituir mais ética ao capitalismo, convém aproveitar o momento atual de ruptura negativa para romper também conceitualmente com um passado doutrinal que nos conduziu às graves turbulências de hoje".
Presidente do Observatório Francês das Conjunturas Econômicas (OFCE) e membro do conselho científico do Instituto François-Mitterrand, Fitoussi defende que "existe um âmbito em que o bem-estar das gerações presentes e futuras pode ser considerado mais complementar do que alternativo: o da justiça social". A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
O capitalismo já está fora de si. Nunca antes “o amor pelo dinheiro”, para usar a expressão de Keynes, o havia conduzido a semelhantes excessos: remunerações astronômicas aos mais ricos, esperanças realizadas com rendimentos quiméricos, a obscenidade da miséria do mundo, explosões das desigualdades, degradação ambiental etc. Para explicar esse paradoxo, podem-se formular, substancialmente, somente duas hipóteses: a primeira é que a ética surgiu como reação ao espetáculo desconfortável das consequências morais e sociais de um mundo econômico pela crítica alheia da ética. A outra é que o tema moral constitui o elemento chave de uma nova estratégia de marketing, com o fim de satisfazer mais do que nunca a vontade de acumular capital. De resto, essas duas hipóteses não se excluem completamente de fato.
Não há do que se admirar do que ocorre no momento atual, caracterizado por uma grande distância entre ética e capitalismo. Mas como explicar isso? Foi a ausência de ética que empurrou o capitalismo à beira do abismo? Nesse caso, deve-se pensar em uma alegoria: a ganância e a cobiça seriam os “ativos” mais “tóxicos” das finanças morais. De fato, não se pode descartar a hipótese de que, tanto hoje quanto ontem, o abandono da ética levou o sistema à crise. “Dois são os vícios mais característicos do mundo econômico em que vivemos”, escrevia Keynes. “Isso não assegura nem o pleno emprego, nem a igualdade da divisão da riqueza e da renda, que é arbitrária”. De onde surge esse juízo moral sobre o estado do mundo? Ou, em outros termos: a economia não foi definida como ciência por excelência, alheia a toda consideração ética?
O seu afastamento irresistível do status de disciplina moral e política contra o de economia-ciência, concebida como um ramo da matemática aplicada, se cristalizou em um conceito de economia de mercado, aparentemente livre de toda conotação histórica ou institucional. No entanto, o capitalismo é, sem dúvida, uma forma de organização histórica, com uma colocação precisa (um modo de produção, diria Marx), nascida dos entulhos e das convulsões políticas do Antigo Regime. Por isso, o seu destino não está marcado no mármore. Em duas palavras, não dissociável do político. É a interdependência entre o Estado de direito e a atividade econômica que confere ao capitalismo a sua unidade. A autonomia da economia é, portanto, uma ilusão, como o é a sua pressuposta capacidade de autorregulação. E é justamente porque o pêndulo se inclina um pouco demais a essa ilusão que nos encontramos na atual ruptura.
Do ponto de vista da ética, esse movimento do pêndulo corresponde a uma inversão de valores. O respeito à ética, pensava-se, pode ser melhor garantido impondo mais regras ao funcionamento dos Estados (sobretudo na Europa, mas a teoria nos vem da América) e menos regras aos mercados. E a engenhosidade dos mercados financeiros fez o resto primeiramente, e depois o seu ofuscamento. Não é nem o caso de destacar aqui o quanto é distante da ética a grande mentira das instituições financeiras, quando prometiam a todos os clientes – contra toda lógica aritmética – rendimentos superiores à média. Era só incompetência? Ou talvez, como Paul Krugman observou recentemente, a atividade financeira lícita não se revelou, no fim das contas, moralmente superior à de um Bernard Madoff?
Em todo caso, na raiz do déficit ético do capitalismo contemporâneo está a inversão da hierarquia entre política e economia, ou muitas vezes a pura e simples subordinação da primeira à segunda. O escândalo ético do nosso tempo está na globalização da pobreza, difundida já também nos países mais ricos. E ainda mais na aceitação de um grau insustentável de desigualdade nos regimes democráticos. De fato, o nosso sistema procede de uma tensão entre dois princípios: o do mercado e o da desigualdade por um lado (um euro, um voto) e, por outro, o da democracia e da igualdade (uma pessoa, um voto). E isso enche de necessidades a pesquisa permanente de uma via intermediária, de um compromisso.
A tensão entre esses dois princípios é dinâmica, enquanto permite que o sistema se adapte sem incorrer na ruptura e, pelo contrário, geralmente se produz nos sistemas regidos por um só princípio organizativo (o sistema soviético). Em outros termos, a tese em base à qual o capitalismo sobreviveu como forma dominante de organização econômica apenas graças à democracia, em vez de sem ela, parece intuitivamente muito mais convincente. Temos hoje uma nova demonstração disso.
Uma hierarquia normal de valores exigiria então que o princípio econômico fosse subordinado à democracia, e não vice-versa. Ora, os critérios geralmente adotados para julgar se uma política ou uma reforma são bem fundadas ou não, são critérios de eficiência econômica. Dan Usher propôs outro critério, que consiste em se perguntar se uma reforma é suscetível de reforçar a democracia ou, pelo contrário, de enfraquecê-la; de promover a adesão dos cidadãos ao regime político, ou de reduzi-la. Como parece evidente hoje, é esse o critério justo. Em nome de qualquer pretensa eficiência as se constrangeriam pessoas a ser menos solidárias do que deveriam?
De fato, as relações entre democracia e mercado são mais complementares do que conflitantes. Impedindo o mercado de gerar exclusão, a democracia reforça a legitimidade do sistema econômico. E o mercado, por sua vez, favorece a adesão à democracia limitando a incidência do político sobre a vida dos cidadãos.
Quando o valor primário é a acumulação do capital, o espetáculo do dinheiro fácil ofusca os horizontes temporais. A anomalia dos rendimentos financeiros excessivos contribui com o desprezo pelo futuro, com a impaciência com relação ao presente, com a desafeição ao trabalho. Não há necessidade de se recorrer ao Antigo Testamento, a Aristóteles ou a Tomás de Aquino para ilustrar a problemática das relações entre a ética e o rendimento do dinheiro. Basta se referir a Adam Smith – não à sua "Teoria dos sentimentos morais", mas sim à "Riqueza das nações". Smith postulava um controle rigoroso das taxas de interesse, por um motivo semelhante àquele que a recém destaquei: o risco de um desprezo pelo futuro. Escreve Adam Smith: “Se a taxa de interesse legal na Grã-Bretanha fosse fixado em um nível muito elevado, por exemplo 8% ou 10% [...] grande parte do capital do país seria retirado dos sujeitos capazes de usá-lo provavelmente mais proficuamente, para cair nas mãos de quem acabaria por dilapidá-lo ou destruí-lo”.
O desprezo pelo futuro, por consequência de insustentáveis pretensões de rendimentos financeiros (ontem), ou de taxas de interesse anormalmente altas (hoje), se coloca em contraste com o horizonte temporal da democracia, necessariamente de longo prazo. E essa contraposição prejudica a possibilidade de os Estados fornecerem bens públicos essenciais e, particularmente, aqueles bens que deveriam responder às preocupações das gerações futuras.
O bem-estar da geração atual pode ser analiticamente dissociado do bem-estar das gerações futuras, ou acrescido ao custo destas últimas. Em outras palavras, entre as gerações de hoje e as de amanhã existe, em teoria, uma arbitragem política. Uma das chaves dessa arbitragem é a taxa social de preferência temporal, que, por exemplo, Nicholas Stern escolheu considerar como igual a zero. Evidentemente, o debate político deveria determiná-lo, isto é, a democracia.
As relações entre as gerações não são tão simples a ponto de consentir a hipótese de um altruísmo generalizado. Existe, porém, um âmbito em que o bem-estar das gerações presentes e futuras pode ser considerado mais complementar do que alternativo: o da justiça social. Quando as desigualdades são estridentes, uma parte importante da sociedade não tem mais nenhuma possibilidade de projetar-se no futuro, nem deseja isso, aprisionada como está às necessidades urgentes do presente e do cotidiano. A questão ecológica pode então ser assumida nos seguintes termos: de qual política temos necessidade para permitir que qualquer pessoa se projete no futuro? Na hipótese otimista de que o altruísmo intergeracional é um “sentimento moral” espontâneo, como parece indicar a atenção de todos nós pela sorte dos nossos filhos, parece evidente que uma redução das desigualdades poderia reconciliar o capitalismo com o longo prazo.
Em síntese, para restituir mais ética ao capitalismo, convém aproveitar o momento atual de ruptura negativa para romper também conceitualmente com um passado doutrinal que nos conduziu às graves turbulências de hoje.
Do mesmo modo, para restituir perspectivas de futuro, seria útil uma “desregulação das democracias”, reservando mais espaço à vontade política e impondo, ao mesmo tempo, mais regras aos mercados. Mas não é justamente isso que hoje está se verificando espontaneamente?
Seria, pelo contrário, o caso de levar mais a sério a atividade deliberativa sobre as normas de justiça que caracterizam a democracia. O grau de desigualdade aceitável deveria ser objeto de um debate público anual em sede parlamentar. Esse debate, baseado nas informações fornecidas pelos institutos de estatística e pelo trabalho dos pesquisadores, teria a célebre vantagem de evitar a decadência das sociedades democráticas a níveis de desigualdade insustentáveis, com ausência de controles e de alarmes e sem que a opinião pública fosse informada disso.
A publicidade que deveria ser dada aos debates e às suas solenidades permitiria interromper, algumas vezes, a concorrência social e fiscal para baixo, com a consequente destruição de bens públicos. A esperança é que se possa instaurar em seu lugar uma concorrência para cima.
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