“Os protagonistas em toda crise econômica são os Estados. Instituições puramente econômicas acabam tendo um papel menor, em grande parte por serem as primeiras responsabilizadas pela bagunça. Nos próximos anos o setor privado será menos admirado e respeitado do que nas últimas décadas. Já o papel da autoridade pública na gestão dos assuntos econômicos vai aumentar pela primeira vez desde os anos 60”. A afirmação é do historiador inglês Tony Judt.
“Temo que estejamos entrando numa era de insegurança na qual atores nacionais e regionais se voltarão para os seus próprios interesses em detrimento de parceiros e competidores mais fracos, e no qual protagonistas econômicos como o Banco Mundial e o FMI, desacreditados por associação às ideias que vinham defendendo, perderão influência”, completa Judt.
Segue a entrevista que Tony Judt concedeu a Samy Adghirni e está publicada no jornal Folha de S.Paulo, 02-03-2009.
A crise global é parte de um "ciclo natural" de desaceleração econômica?
Não faço a menor ideia. Mas tendo a concordar com a crítica da economia neoclássica de [John Maynard] Keynes, segundo a qual os padrões econômicos resultam sempre da decisão de intervir ou não intervir. Estão, portanto, sujeitos a ações de governo não naturais de contraciclo. Prova disso é o grande salto econômico e a estabilidade que sucederam a Segunda Guerra Mundial [1939-45]. Ciclos econômicos longos estão relacionados à memória: enquanto as pessoas tinham em mente a Grande Depressão dos anos 30, elas continuaram acreditando em intervencionismo governamental como forma de garantir emprego e benefícios sociais e prevenir a volta das políticas extremistas que acompanharam a crise. Nos anos 80 e 90, a maioria das pessoas ligadas à autoridade política e econômica não tinha lembrança direta do que havia sido aquela crise e, por isso mesmo, nenhuma razão para preservar ou defender instituições políticas e sociais criadas para prevenir seu ressurgimento. É muito simbólico que a crise tenha ressuscitado agora, no rastro da onda de desregulamentação do sistema de comércio e investimento bancário da década de 90, 60 anos após o New Deal ter sido criado justamente para evitar o colapso que estamos vendo hoje.
As sociedades ocidentais têm alguma reação padrão quando submetidas a crises econômicas?
Não há rastros históricos de comportamento coletivo de populações ocidentais submetidas a crises econômicas modernas. Na recessão dos anos 70, países como a Alemanha encorajavam trabalhadores estrangeiros a voltarem para os seus países, mas praticamente não havia agressões ou racismo. Na Grande Depressão dos anos 30, populações europeias se voltaram para partidos nacionalistas e/ou fascistas que prometiam fechar as fronteiras e reservar os empregos aos nativos. Mas naquela época as sociedades europeias eram etnicamente homogêneas, com pouquíssimos imigrantes da Ásia, África ou América do Sul, e o racismo era voltado principalmente contra minorias locais, como os judeus. A crise atual causou nos EUA uma brutal perda da fé no que até pouco tempo atrás eram clichês inabaláveis sobre as virtudes do livre mercado. E a crise certamente atiçou o debate sobre os imigrantes ilegais. Mas a diversidade física do país amortece as consequências de medo e da insegurança, pois boa parte das vítimas do desemprego já são negros ou minorias. O impacto sociológico depende da cultura política mas, principalmente, da atitude dos Estados. Quando governos, como atualmente o Reino Unido, a Dinamarca e a Suíça, dão suporte retórico à ideia de que estrangeiros representam uma ameaça aos empregos locais e ao sistema de Previdência social, então a violência verbal e às vezes física contra imigrantes acaba legitimada. Mas não há correlação automática entre crise econômica e aumento das tensões sociais. Na França, a raiva e o medo estão diretamente voltados contra o governo e as empresas, não contra outras pessoas.
As reações populistas e demagogas de alguns governos ocidentais têm precedente histórico?
Hoje não há, ao contrário do passado, uma guinada significativa rumo ao protecionismo e a barreiras comerciais em larga escala. Mas o protecionismo humano está em alta: não vejo nenhum país europeu em que os partidos dominantes não tenham dado corda ao discurso que pretende "limitar" a imigração, restringir os empregos locais aos trabalhadores locais etc. Esta é uma reação de defesa natural diante de uma crise tão grande. Mas é também um sinal de que as siglas de centro estão apavoradas com a perspectiva de que os novos partidos populistas tenham cada vez mais poder na medida em que a crise se alastra.
O racismo está em alta?
O racismo e a xenofobia na Europa estão aumentado há muito tempo. O surgimento, no cenário pós-Guerra Fria, de partidos nacionais demagogos na maioria dos países da Europa Central e do Leste significa que há um nicho natural para políticos que querem explorar o medo da concorrência, dos estrangeiros e da mudança. Não é por acaso que os países pequenos e prósperos do oeste e do norte da Europa são palco da mudança mais visível: é na Áustria, na Suíça, na Holanda, na Dinamarca e na Suécia que os partidos antiestrangeiros mais crescem. Uma razão é que esses países permaneceram mais "brancos" e homogêneos por mais tempo e eram prósperos o bastante para garantir sistemas de Previdência social muito confortáveis. Acho que estamos à beira de um salto do sentimento anti-imigrante na Europa ocidental e central, com um paradoxo: o de que os europeus centrais, tão empenhados em manter à distância turcos e demais não-europeus, são eles mesmos vistos como uma ameaça à prosperidade europeia pelos membros mais tradicionais da UE.
Há países mais ou menos sujeitos a distúrbios sociais?
Países como Portugal, EUA ou Grécia, que nunca fizeram grande coisa em termos de benefícios sociais, são menos propensos a sofrer mudanças bruscas de humor.
Que instituições ganham e quais perdem com a crise?
Os protagonistas em toda crise econômica são os Estados. Instituições puramente econômicas acabam tendo um papel menor, em grande parte por serem as primeiras responsabilizadas pela bagunça. Nos próximos anos o setor privado será menos admirado e respeitado do que nas últimas décadas. Já o papel da autoridade pública na gestão dos assuntos econômicos vai aumentar pela primeira vez desde os anos 60.
Uma consequência será o fortalecimento da autoridade de países como a China e o declínio do chamado modelo anglo-saxão. Isto não é necessariamente uma boa notícia: por mais equivocada que fosse a cultura de capitalismo irrestrito praticada no Ocidente nos últimos 20 anos, ao menos ela estava historicamente associada a valores como o Estado de direito e a liberdade e à relativa equidade social. Se os chineses, para mencionar o exemplo mais óbvio, conseguirem convencer o mundo de que a incompetência econômica americana reflete um defeito estrutural no modelo ocidental, teremos motivo de preocupação.
Eu adoraria dizer que órgãos internacionais como a ONU, o Banco Mundial ou algumas ONGsBanco Mundial e o FMI, desacreditados por associação às ideias que vinham defendendo, perderão influência. se fortalecerão com o rápido colapso da supremacia econômica e moral americana. Mas não acho que será o caso. Temo, em vez disso, que estejamos entrando numa era de insegurança na qual atores nacionais e regionais se voltarão para os seus próprios interesses em detrimento de parceiros e competidores mais fracos, e no qual protagonistas econômicos como o
Pode ser uma coisa boa. Espero que tenhamos assistido ao fim das lições do FMI sobre como "outros" países deveriam equilibrar seus Orçamentos e abrir seus mercados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário