por Antonio Carlos Alpino Bigonha*
O ano de 2009 promete ser polêmico a julgar pelas primeiras e bombásticas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. O presidente Gilmar Mendes que, na solenidade de abertura do ano judiciário, pela manhã, afirmara ter a Corte "a real dimensão de que não lhe cabe substituir-se ao legislador, muito menos restringir o exercício da atividade política, de essencial importância no Estado Constitucional", à tarde presidiu a primeira sessão plenária para aprovar o enunciado número 14 da Súmula do STF, em típica e evidente atividade legislativa. Esse verbete, aprovado a pedido da Ordem dos Advogados do Brasil, possibilita aos causídicos acesso aos autos das investigações sigilosas, em clara revogação do Código de Processo Penal.
Na mesma semana inaugural, na primeira quinta-feira do ano judiciário, o Plenário da Corte deliberou no sentido de declarar a presunção absoluta da inocência, antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória; o que coloca o Brasil em honrosa vanguarda no que tange à proteção dos direitos do réu processado pela Justiça criminal. É um regime jurídico tão favorável ao réu que ainda não pode ser adotado em nações menos desenvolvidas do ocidente, como os Estados Unidos da América ou países do Velho Continente. A capacidade de conciliar antagonismos tem sido a marca do Brasil, mas beira ao surrealismo o fato de sermos, a um só tempo, a partir da recente decisão do Supremo, campeões da criminalidade e campeões da tutela dos direitos dos réus investigados pela prática de crimes.
A tese do Ministério Público, mais razoável do que o entendimento do Supremo Tribunal Federal, pretendia que a sentença condenatória criminal, já confirmada pelo Tribunal de Segunda Instância, fosse passível de execução provisória; vale dizer, importasse o imediato recolhimento do réu à prisão. Ora, uma vez que os recursos interpostos ao Superior Tribunal de Justiça e ao próprio Supremo não detêm, em regra, efeito suspensivo, nada mais lógico do que o réu acompanhar preso o seu processamento. Hoje, na prática, aquele que não se enquadra nos pressupostos da prisão preventiva tem em seu favor todo um sistema de artifícios forenses que podem protelar indefinidamente o processamento da ação penal, até o limite da extinção da punibilidade pela prescrição ou, mesmo, morte: resta às vítimas e a sociedade a esperança da Justiça Divina.
São dois péssimos precedentes para os profissionais da Justiça que buscam reduzir os altos índices de criminalidade em nosso País. A percepção de que a lei penal pode ser violada sem qualquer efeito concreto sobre a liberdade pode infundir na população, mesmo que involuntariamente, o sentimento da impunidade. A Justiça Criminal, nesse sentido, passa a ser vista como mero cartório onde cidadãos, cônscios de seus direitos fundamentais, respondem burocraticamente pela violação da lei penal, sem qualquer risco de perda da liberdade até que haja o derradeiro veredicto pelo Supremo Tribunal. É evidente, por outro lado, que esse centralismo judicial redundará no absoluto abarrotamento de processos no STF, com aumento da morosidade judicial que beneficiará, mais uma vez, o réu, em detrimento da vítima e da sociedade.
A advocacia é um dos mais nobres e belos ramos da carreira jurídica, e muitos dos membros do Ministério Público e da magistratura iniciam sua vida profissional como advogado e, em muitos casos, a ela retornam após a aposentadoria. A presunção da inocência é um dos pilares da democracia, na perspectiva de que o homem não pode ser objeto da ação do estado, e de que seria profundamente injusto obrigar ao cidadão provar sua honestidade: as investigações devem ser objetivas e incumbe-se ao Ministério Público provar a culpa. Não se trata, portanto, de embate corporativo contra a classe dos advogados ou contra os direitos de seus clientes, até porque todo promotor ou procurador é, antes de tudo, guardião constitucional dos direitos fundamentais das partes.
O que se espera do Supremo Tribunal Federal e da Ordem dos Advogados do Brasil é que a busca da tutela dos direitos fundamentais dos réus processados pela Justiça Criminal não inviabilize aos membros do Ministério Público e aos da magistratura o cumprimento de sua missão constitucional que é a defesa da sociedade. A exacerbação de garantias fundamentais pode, ao largo de traduzir nobre sentimento de respeito à dignidade do acusado, significar indiferença ao drama humano das vítimas e do corpo social, amedrontado diante da escalada de violência, do avanço do crime organizado e da suprema impunidade.
*Antonio Carlos Alpino Bigonha é presidente da ANPR e procurador regional da República
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