“Si bien escrita sin arte, es el reflejo fiel de sus propias impresiones y de lo que presenció y el único documento que hasta ahora se conoce de aquel memorable suceso”. (Toribio Medina)
- Gaspar de Carvajal
Gaspar de Carvajal nasceu no ano de 1504, na pequena cidade de Trujillo, na Extremadura espanhola. Em 1537 partiu para o Peru com dez outros frades da Ordem dos Pregadores, também conhecida como Ordem dos Dominicanos. Em 1538, como vigário provincial de Lima, fundou o primeiro convento dominicano da América. Em 26 de dezembro de 1541, Pizarro determinou que Orellana que descesse o rio Coca, em busca de provisões, Carvajal o acompanhou. Quase nove meses depois, em 11 de setembro de 1542, chega à ilha de Cubagua, onde tomou conhecimento da morte do bispo Valverde pelos índios da Puna e a de Francisco Pizarro pelos do Chile. Esses fatos o levaram a não retornar com Orellana à Espanha, seguindo para Lima. Em 1544 ocupou o cargo de vice-prior do convento de Lima e, em 1548, prior do convento de Cuzco, de onde foi enviado para Tucuman, com o título de protetor dos índios. Em 1557 foi eleito provincial de sua ordem no Peru e, em 1575, encaminhou ao rei um documento solicitando-lhe que zele pela proteção e defesa dos índios.
- Francisco Orellana
Francisco de Orellana nasceu, em 1511, também, em Trujillo. Parente de Francisco Pizarro participou das conquistas de Lima, Trujillo e Cuzco. Quando soube que as cidades de Cuzco e Lima estavam sitiadas pelos índios partiu, imediatamente, em socorro de Francisco Pizarro. Em 1538 fundou a cidade de Santiago de Guayaquil sendo nomeado capitão general e tenente de governador. Nela permaneceu dois anos, até ser chamado por Gonzalo Pizarro, irmão de Francisco, para acompanhá-lo na sua jornada ao ‘país da Canela’ e do ‘El Dorado’.
- A narrativa
A crônica do frade dominicano Carvajal é pesada, repetitiva e de difícil entendimento. São raras as informações a respeito da fauna, da flora e costumes indígenas. É específico, apenas, quando se refere às Amazonas. Extrapola, nos números, quando se refere a quantidade de nativos que habitavam as margens dos rios ou que enfrentaram pelo caminho, exagera no estado de beligerância, em que seus habitantes viviam e, na hostilidade aos viajantes. Ao mesmo tempo em nos fala da exuberância da floresta na qual não havia ‘fome e miséria’, pois a ‘natureza era a principal fonte de subsistência’ os espanhóis enfrentavam privações de toda ordem e chegaram a comer os próprios cintos e as solas dos sapatos. Só conseguiam se alimentar quando eram abastecidos por tribos amigáveis ou tomavam de assalto as aldeias. Não se pode considerar sua ‘Relação’ como um documento histórico, pois o frade estava mais preocupado em impressionar o rei de Espanha e transformar Orellana e seus companheiros de viagem em heróis de uma épica jornada do que ser fiel aos fatos.
- País da Canela e do El Dorado
Esta expedição, como tantas outras antes e depois dela, foi motivada pela lenda do ‘El Dorado’ e do ‘País da Canela’, regiões de riquezas incomensuráveis que os espanhóis julgavam existir na Amazônia.
“Em fevereiro de 1541 partiu de Quito uma grande expedição espanhola com a missão de apossar-se do País de Canela e de procurar o legendário rei Dourado, que o gentio localizava no oriente andino. O comando foi dado a Gonçalo Pizarro, irmão de Francisco Pizarro, conquistador do Peru. Compunham-na 220 espanhóis a cavalo, 4.000 índios, 2.000 lhamas, 4.000 porcos e 1.000 cães. Grande quantidade de material era transportado: abastecimento de boca, pólvora, munição, arcabuzes e bestas.
Conforme entendimentos anteriores, Pizarro esperava a chegada de um reforço à sua coluna, que tinha partido de Guayaquil sob o comando de seu parente e amigo Francisco de Orellana. Por uma razão que se desconhece, Pizarro partiu de Quito antes da chegada de seu convidado. Constatado o fato, Orellana não vacila. Com seus 30 homens, segue os passos de Gonçalo Pizarro, adentrando-se nas misteriosas terras de Hatun Quijos. Quer alcançar o chefe o quanto antes. Mas a incursão de Orellana se revestiu de verdadeiro calvário. Duríssimo foi o contato com a Cordilheira, suas nevascas e tormentas. Depois de percorrer 30 léguas e de haver perdido pelo caminho todos os cavalos, roupas, bestas e arcabuzes, a expedição acabou alcançando Pizarro na localidade de Muti. Foi um raro momento de alegria, que durou muito pouco. Na tarde do dia seguinte, o céu escureceu e a terra começou a tremer, abrindo enormes crateras. A noite foi infernal. O vulcão Chimborazo começou a vomitar fogo, logo seguido pelos seus outros irmãos daquela família vulcânica. Os expedicionários, que jamais haviam visto antes um terremoto ou um vulcão em erupção, enchem-se de pavor. Os índios dispersam-se, os cavalos relincham, os porcos se perdem e o material ficou esparramado no fundo das crateras. Na região de Papallacta, a 6.000m de altitude, uma tempestade de neve mata 100 índios em um só dia.
(...) Chuvas pesadas e contínuas apodrecem as roupas dos espanhóis. Florestas virgens se antepõem ao passo do homem, sendo necessário abrir o caminho a facão. Umidade permanente, fome, febres, mosquitos, vampiros, jaguares, serpentes e aranhas venenosas convertem aquele território em um autêntico inferno verde. Cada passo adiante que dá a expedição de Pizarro, é uma conquista; cada metro, uma vitória. Ainda hoje, quatro séculos decorridos, nenhuma outra expedição se atreveu a cumprir a mesma rota.
Gonzalo Pizarro encontra, afinal, o vale da Canela. Fica, contudo, decepcionado já que os raquíticos arbustos não passavam de uma espécie inferior, sem valor comercial. Quanto ao rei Dourado, nem sinal. A expedição progride lentamente. O número de soldados enfermos aumenta a cada dia”. (BRASIL)
- A separação
Pizarro, em busca de suprimentos, permanece explorando a bacia do rio Napo, enquanto seu fiel escudeiro Orellana desce pelo rio Coca com o mesmo objetivo. As buscas infrutíferas de Pizarro esgotaram seus suprimentos forçando-o, por fim, a retornar a Quito com 80, dos 220, espanhóis que o haviam seguido. A Amazônia cobrava um alto tributo àqueles que a desafiavam e cobiçavam.
“Aí acabaram os povoados, e como já íamos muito necessitados, com falta de comida, mostravam-se todos os companheiros muito descontentes e falavam em voltar, não seguindo mais para diante, porque se tinha notícia de que havia um grande trecho despovoado.
Vendo o capitão Orellana o que se passava e a grande penúria em que todos estavam, tendo por sua vez perdido já tudo o que possuía, pareceu-lhe que não seria honroso voltar depois de tantos prejuízos. Dirigiu-se, portanto, ao Governador, dizendo-lhe que aí deixaria o pouco que possuía e seguiria rio abaixo. Que se a sorte o favorecesse, de modo que achasse nas proximidades comida com que todos se pudessem remediar, disso daria pronto conhecimento, e que se tardasse, não se preocupasse o Governador, mas voltasse para trás, para onde houvesse comida e ali o esperasse três ou quatro dias ou o tempo que lhe parecesse melhor, e se ele não chegasse, que não fizessem caso. Concordou o Governador em que ele fizesse como lhe aprouvesse.
Tomou consigo o Capitão Orellana a 57 homens, com os quais se meteu na embarcação que construíra e em algumas canoas que haviam tomado aos índios, começando a descer o rio com a intenção de volver logo que encontrasse víveres. Mas tudo saiu ao contrário do que todos pensávamos, pois não descobrimos comida num decurso de 200 léguas, nem nós a encontramos, padecendo por isso grandes necessidades, como adiante se dirá. E assim íamos caminhando, suplicando a Nosso Senhor que houvesse por bem guiar-nos naquela jornada, de maneira que pudéssemos volver aos nossos companheiros.
Dois dias depois que partimos e nos apartamos dos nossos companheiros, quase nos perdemos no meio do rio, porque o barco bateu num pau e quebrou uma tábua, de modo que, se não estivéssemos perto de terra, ali acabaríamos a nossa jornada. Mas remediamos de pronto, tirando água e pondo-lhe um pedaço de tábua, e logo começamos nosso caminho muito pressurosos. E como o rio corria muito, andávamos a vinte e a vinte e cinco léguas, porque o rio ia caudaloso, pelos muitos outros rios que nele desaguavam pela mão direita, para os lados do sul. Viajamos três dias sem nenhum povoado.
Vendo que nos havíamos apartado do local onde tinham ficado os nossos companheiros, e que havia acabado o pouco que trazíamos como mantimento para nossa viagem tão incerta como a que fazíamos, confabularam o capitão e os companheiros sobre a dificuldade em que nos achávamos, e a volta, e a falta de comida, porque, como pensávamos regressar logo, não medimos o comer. Confiados que não poderíamos estar longe, resolvemos prosseguir, e como nem no outro dia nem no imediato se encontrasse comida ou sinal de povoado (...). Estávamos em grande perigo de morrer da grande fome que padecíamos e assim, buscando o conselho do que se devia fazer, comentando a nossa aflição e trabalhos, resolveu-se que escolhêssemos de dois males aquele que ao Capitão e a todos nós parecia o menor, e foi ir por diante, seguindo o rio: ou morrer ou ver o que nele havia, confiando em Nosso Senhor que se serviria por bem conservar as nossas vidas até ver o nosso remédio”. (CARVAJAL)
- Nativos amigáveis
O cronista descreve os povos indígenas como seres de hábitos e costumes bárbaros, frequentemente exagerando nos relatos. Em contrapartida mostra os heróicos espanhóis como instrumentos de ‘civilidade’ e pretensos ‘salvadores de almas’. Os relatos são carregados de um tenso dualismo, um conflito entre as forças do bem e do mal. O cronista reafirma a superioridade do castelhano e considera os nativos como presas fáceis do demônio, almas que teriam de ser resgatadas. O ‘entendimento’, por parte dos caciques, do discurso de Orellana, era motivado mais pela pólvora dos arcabuzes do que pela pretensa fluidez, do capitão, na língua nativa, tão propalada por Carvajal.
“Avistando-os o Capitão, posse na barranca do rio e na sua língua, pois um pouco os entendia, começou a falar com eles e a dizer que não tivessem temor e que se chegassem, que lhes queria falar. E assim chegaram dois índios até onde estava o Capitão, que os amimou e lhes tirou o medo e lhes deu o que tinha, dizendo-lhe que fossem chamar o chefe, que lhe queria falar, e que o mesmo nenhum receio tivesse de que lhe viesse a fazer algum mal. Tomaram os índios o que lhes foi dado e logo foram dar o recado ao seu senhor, que veio logo mui luzido aonde estavam o Capitão e os companheiros, que o receberam muito bem e o abraçaram, mostrando o próprio Cacique sentir grande contentamento pela boa recepção que se lhe fazia. Logo mandou o Capitão que lhe dessem de vestir e outras coisas, com as quais ele muito se alegrou, e depois ficou tão contente que disse ao Capitão que visse de que tinha necessidade, que ele lhe daria, ao que o mesmo lhe respondeu que apenas o mandasse prover de comida, que de nada mais precisava. E logo o Cacique mandou que os seus índios trouxessem comida, e com muita presteza trouxeram abundantemente o que foi necessário, de carnes, perdizes, perus e pescados de muitas qualidades. Muito agradeceu o Capitão ao Cacique e lhe disse que fosse com Deus e que chamasse a todos os senhores daquelas terras, que eram 13, porque queria falar a todos juntos e dizer o motivo da sua vinda. Embora dissesse que no dia seguinte viriam todos, e que ele os ia chamar, ficou o Capitão dando ordens sobre o que convinha a ele e aos seus companheiros, dispondo sobre as vigílias para que, tanto de dia como de noite, houvesse muita cautela para que os índios não nos atacassem nem houvesse descuido ou frouxidão por onde tomassem ânimo para nos acometer de noite ou de dia.
No dia seguinte, à hora de vésperas, veio o Cacique trazendo consigo três ou quatro senhores, que os outros não puderam vir por estar longe, e que no outro dia viriam. Recebeu-os o Capitão como ao primeiro e lhes falou longamente da parte de Sua Majestade, e em seu nome tomou posse da terra; e assim o repetiu com os outros que vieram depois a esta província, que, como disse, eram treze.
Vendo o Capitão que estavam em paz consigo os senhores e gente da terra, satisfeitos com o bom tratamento, tomou posse da mesma em nome de Sua Majestade. Isto feito mandou reunir os seus companheiros, para falar-lhes sobre o que convinha à sua jornada e salvamento e às suas vidas, fazendo-lhes um longo discurso, animando-os com grandes palavras. Terminado este arrazoamento, ficaram todos muito contentes por ver a boa disposição do Capitão e com quanta paciência sofria ele os trabalhos em que estava, e também lhe disseram muito boas palavras e com as que o Capitão lhes dizia andavam tão alegres que não sentiam o trabalho que faziam.
Depois que os companheiros se refizeram tanto da fome e trabalhos passados, vendo o Capitão que era necessário providenciar para o futuro, mandou chamar todos os seus companheiros e lhes tornou a dizer que bem viam que com o barco e canoas que levávamos, se Deus fosse servido guiar-nos até ao mar, neles não podíamos sair com segurança. Era, portanto, preciso procurar com diligência fazer outro bergantim, que fosse de maior porte, para que pudéssemos navegar...” (CARVAJAL)
- Nativos hostis
“Ao meio dia os nossos companheiros já não podiam remar e íamos todos alquebrados pela noite mal passada e pela guerra que os índios nos faziam. O Capitão, para que a gente tomasse um pouco de repouso e comesse, mandou que aportássemos em uma ilha despovoada, que estava no meio do rio. Apenas começamos a cozinhar a comida, vieram canoas em grande quantidade e três vezes nos atacaram, de tal maneira que nos puseram em grande apertura. Vendo os índios que pela água não nos podiam desbaratar, resolveram acometer por terra e por água, porque, como havia muitos índios, havia gente para tudo. Vendo o Capitão o que os índios ordenavam, resolveu não os esperar em terra, embarcando e fazendo-se ao largo no rio, porque pensava ali defender-se melhor. Começamos a navegar, sem que os índios nos deixassem de seguir e dar combate, porque destas aldeias se tinham reunido mais de 130 canoas, nas quais havia mais de 8.000 índios e por terra era incontável a gente que aparecia.
Entre esta gente e canoas de guerra andavam quatro ou cinco feiticeiros, todos pintados e com as bocas cheias de cinza que atiravam para o ar, tendo nas mãos uns hissopes, com os quais atiravam água no rio, à maneira de feitiços, e depois de contornar os nossos bergantins, chamavam a gente de guerra, e logo começavam a tocar seus tambores e cornetas e trombetas de pau, e com grande gritaria nos atacavam. Mas os arcabuzes e balhestas, depois de Deus, eram o nosso amparo. Levaram-nos deste modo até meter-nos em angustura de um braço de rio. Aqui nos puseram em grande aperto, e tamanho, que não sei se algum de nós escaparia, porque nos tinham preparado uma emboscada em terra e dali nos abarcavam. Determinaram-se os da água a exterminar-nos, e já estavam muito perto de nós. Vinha adiante o capitão-general, muito destacado como homem. Um dos nossos companheiros, chamado Fernão Gutierrez de Celis, fez pontaria nele e lhe deu um tiro de arcabuz no meio do peito e o matou. Logo a sua gente desmaiou e acudiram todos a ver o seu senhor, e nesse meio tempo conseguimos sair para o largo do rio. Mas ainda nos seguiram durante dois dias e duas noites, sem nos deixarem repousar, que tanto durou para sairmos das terras desse grande senhor Machiparo, e que, no parecer de todos, teria mais de oitenta léguas, todas povoadas, que não havia de povoado a povoado um tiro de besta, e as mais distantes, não se afastavam mais de meia légua, e houve aldeias que se estendiam por mais de cinco léguas sem separação de uma casa para outra, o que era coisa maravilhosa de ver. Como íamos de passagem e fugindo, não tivemos oportunidade de saber o que havia terra a dentro. Mas segundo a sua disposição e aspecto, deve ser a mais povoada que já se viu. Diziam-nos os índios da província de Apária que havia um grandíssimo senhor terra a dentro, para o sul, que se chamava lca, e que ele possuía grandes riquezas de ouro e prata, noticia que tivemos por certa e muito boa”. (CARVAJAL)
- Amazonas
“A lenda das amazonas guerreiras percorreu todas as regiões celestes. Ela pertence àqueles círculos uniformes e estreitos de sonhos e idéias em torno dos quais a imaginação poética e religiosa de todas as raças humanas e todas as épocas gravita quase que instintivamente”. (Alexander von Humboldt)
Carvajal afirma que mesmo cansados, doentes e debilitados em suas forças, em função de carência alimentar e da extenuante jornada pelo Rio-Mar os 59 homens derrotaram as amazonas. As temidas indígenas, hábeis no manejo do arco e da flecha, bem nutridas, formosas e adestradas para guerra, foram derrotadas por um punhado de espanhóis fracos e famintos.
“(...) Havia lá uma praça muito grande e no meio da praça um grande pranchão de dez pés em quadro, pintado e esculpido em relevo, figurando uma cidade murada, com a sua cerca e uma porta. Nessa porta havia duas altíssimas torres com as suas janelas, as torres com portas que se defrontavam, cada porta com duas colunas. Toda esta obra era sustentada sobre dois ferocíssimos leões que olhavam para trás, como acautelados um do outro, e a sustinham nos braços e nas garras. Havia no meio desta praça um buraco por onde deitavam, como oferenda ao sol, a chicha, que é o vinho que eles bebem, sendo o sol que eles adoram e têm como seu Deus.
Era esse edifício coisa digna de ser vista, admirando-se o Capitão e nós todos de tão admirável coisa. Perguntou o Capitão a um índio o que era aquilo e que significava naquela praça, e o índio respondeu que eles são súditos e tributários das Amazonas, e que não as forneciam senão de penas de papagaios e guacamaios para forrarem os tetos dos seus oratórios. Que as povoações que eles tinham eram daquela maneira, conservando-o ali como lembrança e o adoravam como emblema de sua senhora, que é quem governa toda a terra das ditas mulheres. Encontrou-se também nessa praça uma casa muito pequena, dentro da qual havia muitas vestimentas de plumas de diversas cores, que os índios usavam para celebrar as suas festas e bailar quando se queriam regozijar diante do já referido pranchão, e ali ofereciam seus sacrifícios com a sua danada intenção.
(...) Quero que saibam qual o motivo de se defenderem os índios de tal maneira. Hão de saber que eles são súditos e tributários das amazonas, e conhecida a nossa vinda, foram pedir-lhes socorro e vieram dez ou doze. A estas nós as vimos, que andavam combatendo diante de todos os índios como capitãs, e lutavam tão corajosamente que os índios não ousavam mostrar as espáduas, e ao que fugia diante de nós, o matavam a pauladas. Eis a razão por que os índios tanto se defendiam.
Estas mulheres são muito alvas e altas, com o cabelo muito comprido, entrançado e enrolado na cabeça. São muito membrudas e andam nuas em pelo, tapadas as suas vergonhas, com os seus arcos e flechas nas mãos, fazendo tanta guerra como dez índios. E em verdade houve uma destas mulheres que meteu um palmo de flecha por um dos bergantins, e as outras um pouco menos, de modo que os nossos bergantins pareciam porco espinho.
Voltando ao nosso propósito e combate, foi Nosso Senhor servido dar força e coragem aos nossos companheiros, que mataram sete ou oito destas amazonas, razão pela qual os índios afrouxaram e foram vencidos e desbaratados com farto dano de suas pessoas.
(...) Perguntou o Capitão como se chamava o senhor dessa terra, e o índio respondeu que se chamava Couynco, e que era grande senhor, estendendo-se o seu senhorio até onde estávamos. Perguntou-lhe o Capitão que mulheres eram aquelas que tinham vindo ajudá-los e fazer-nos guerra. Disse o índio que eram umas mulheres que residiam no interior, a umas sete jornadas da costa, e por ser este senhor Couynco seu súdito, tinham vindo guardar a costa. (...) Disse o índio que as aldeias eram de pedra e com portas, e que de uma aldeia a outra iam caminhos cercados de um e outro lado e de distância em distância com guardas, para que não possa entrar ninguém sem pagar direitos. (...) Ele disse que estas índias coabitam com índios de tempos em tempos, e quando lhes vem aquele desejo, juntam grande porção de gente de guerra e vão fazer guerra a um grande senhor que reside e tem a sua terra junto à destas mulheres, e à força os trazem às suas terras e os têm consigo o tempo que lhes agrada, e depois que se acham prenhas os tornam a mandar para a sua terra sem lhes fazer outro mal; e depois quando vem o tempo de parir, se têm filho o matam ou o mandam ao pai; se é filha, a criam com grande solenidade e a educam nas coisas de guerra. Disse mais que entre todas estas mulheres há uma senhora que domina e tem todas as demais debaixo da sua mão e jurisdição, a qual senhora se chama Conhorí. Disse que há lá imensa riqueza de ouro e prata, e todas as senhoras principais e de maneira possuem um serviço todo de ouro ou prata, e que as mulheres plebéias se servem em vasilhas de pau, exceto as que vão ao fogo, que são de barro.
Disse que na capital e principal cidade, onde reside a senhora, há cinco casas muito grandes, que são oratórios e casas dedicadas ao sol, as quais são por elas chamadas caranaí, e que estas casas são assoalhadas no solo e até meia altura e que os tetos são forrados de pinturas de diversas cores, que nestas casas tem elas ídolos de ouro e prata em figura de mulheres, e muitos objetos de ouro e prata para o serviço do sol. Andam vestidas de finíssima roupa de lã, porque há nessa terra muitas ovelhas das do Perú. Seu trajar é formado por umas mantas apertadas dos peitos para baixo, o busto descoberto, e um como manto, atado adiante por uns cordões. Trazem os cabelos soltos até ao chão e postas na cabeça coroas de ouro, da largura de dois dedos”. (CARVAJAL)
- Privações
À falta de outros mantimentos, entretanto, chegamos a tal extremo que só comíamos couros, cintas e solas de sapatos cozidos com algumas ervas, de maneira que era tal a nossa fraqueza, que não nos podíamos ter em pé. (Gaspar de Carvajal)
“Demorou-se nesta obra quatorze dias, de contínua e ordinária penitência, pela muita fome e pouca comida que havia, pois só se comia o que se mariscava à beira d’água, que eram uns caracóis e uns caranguejos vermelhinhos, do tamanho de rãs. (...) Daí saímos no dia oito do mês de agosto, bem ou mal providos, segundo as nossas possibilidades, pois nos faltavam muitas coisas de que carecíamos. Mas como estávamos em lugar onde não as podíamos obter, passávamos os nossos trabalhos como melhor podíamos. Fomos à vela, guardando a maré, bordejando de um e outro lado, sendo muito largo o rio, embora fôssemos entre ilhas, pois não estávamos em pequeno perigo quando esperávamos a maré. Como não tínhamos âncoras, estávamos amarrados a umas pedras. Mantínhamo-nos tão mal que nos sucedia muitas vezes garrar e voltar rio acima em uma hora mais do que tínhamos andado no dia todo. Quis nosso Deus, não olhando para os nossos pecados, tirar-nos destes perigos e fazer-nos tantas mercês que não permitiu que morrêssemos de fome nem padecêssemos naufrágio, do qual estivemos muito perto muitas vezes, já todos n’água e pedindo a Deus misericórdia”. (CARVAJAL)
- Foz do Amazonas (26 de agosto de 1542)
“Saímos da boca deste rio por entre duas ilhas, separadas uma da outra por quatro léguas de largura do rio, e o conjunto, como vimos acima, terá de ponta a ponta mais de cinquenta léguas, entrando a água doce pelo mar mais de vinte e cinco léguas. Cresce e mingua seis ou sete braças”. (CARVAJAL)
- Nova Cadiz
“(...) aportamos na ilha de Cubágua e cidade de Nova Cadiz, onde encontramos nossa companhia e o pequeno bergantim, que chegara dois dias antes, porque eles chegaram a nove de setembro e nós a onze, no bergantim grande, onde vinha o Capitão. Tanta foi a alegria que uns e outros recebemos, como não posso descrever, pois eles nos tinham por perdidos e nós a eles.
(...) Desta ilha resolveu o Capitão ir dar contas a Sua Majestade deste novo e grande descobrimento, o qual temos que é o Marañon, porque a desde a foz até à ilha de Cubagua 450 léguas, porque assim o vimos depois que chegamos”. (CARVAJAL)
Fontes:
CARVAJAL, Frei Gaspar de - Relatório do novo descobrimento do famoso rio grande descoberto pelo capitão Francisco de Orellana (1542) - Brasil - São Paulo, 1941 - Companhia Editora Nacional.
BRASIL, Altino Berthier - Desbravadores do Rio Amazonas – Brasil, RS – Porto Alegre, 1996 - Editora Posenato Arte & Cultura
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