Olha esta água, que é negra como tinta.
Posta nas mãos, é alva que faz gosto;
Dá por visto o nanquim com que se pinta,
Nos olhos, a paisagem de um desgosto.
(Quintino Cunha)
Estamos iniciando o planejamento da 2ª fase do Projeto-Aventura ‘Desafiando o Rio-Mar’. Com o objetivo de iniciar uma metódica preparação intelectual sobre nossa próxima jornada, no rio Negro, no final do ano, vamos publicar uma série de artigos que visam apresentar aos leitores um pouco, dos mistérios e encantos dessa jóia de águas negras. A descida do ‘Rio Negro’, de caiaque, é, também, uma homenagem ao importante escritor da literatura brasileira, Euclides da Cunha, no ano do centenário da sua morte. Euclides foi covardemente assassinado em 15 de agosto de 1909, aos 43 anos de idade.
- Projeto-Aventura ‘Desafiando o Rio Mar’ - 2ª Fase
Percorremos todo o Rio Solimões, de Tabatinga a Manaus, num percurso que superou os 1700 quilômetros, tendo em vista a exploração de afluentes, paranás, furos e lagos ao longo de sua calha. Não atingimos o Mar, como o próprio nome do projeto indica, mas resolvemos que, antes de atingi-lo, devemos percorrer o quarto maior rio brasileiro em vazão: o Rio Negro. Estamos na fase de planejamento e treinamento sem uma data marcada para o início da jornada, tendo em vista que ainda não dispormos dos recursos necessários, da ordem de R$30.000,00 para a execução do projeto.
- Marechal Boanerges Lopes de Souza
Por Heloisa Alberto Torres - Presidente do Conselho Nacional de Proteção aos Índios (Rio de Janeiro, outubro de 1958).
(...) “Nascido em Corumbá em 1881, estava o jovem Boanerges destinado a seguir a carreira paterna, ingressando no funcionalismo público da Alfândega local.
(...) Terminado o curso secundário no Liceu Cuiabano, em 1897, requereu matrícula na Escola Militar. Foi, então, que se apresentou um grande obstáculo, que acabou por ceder em face da vontade firme do futuro oficial: a Campanha de Canudos havia alertado o Exército para o problema da seleção física de seus componentes e o Doutor Malhado, médico da guarnição, hesitava em declarar apto aquele rapaz franzino e de estatura pequena, mas em quem reconhecia qualidades especiais raras que receava contrariar.
Na Capital Federal, todavia, as decisões corriam a favor de Boanerges, e este, no dia 30 de janeiro de 1898, voltou à casa do Doutor Malhado, exibindo o exemplar do ‘Diário Oficial’ em que vinha o despacho favorável do Ministro da Guerra ao seu requerimento. A luta travada na consciência do Doutor Malhado repontou numa frase proferida em resposta às insistências do aspirante a militar. ‘Bem, menino, para você não dizer que não chegou a marechal por minha culpa, vá amanhã, às sete horas, à Enfermaria Militar, para ser inspecionado’. Boanerges assentou praça e embarcou no mesmo dia com destino ao 2° Batalhão de Engenharia, sediado em Porto Alegre.
(...) Servia o Tenente Boanerges no 21° Batalhão de Infantaria, em Corumbá, quando sofreu o primeiro impacto que lhe despertou interesse e entusiasmo pelos trabalhos da Comissão Telegráfica, chefiada pelo então Major Rondon. Representando sua unidade na inauguração da estação telegráfica do lendário forte de Coimbra, a 1° de janeiro de 1905, ficou empolgado com as festas que se realizavam em comemoração à epopéia da construção da linha telegráfica através dos pantanais que se interpunham entre São Lourenço, ao sul de Cuiabá, e o forte de Coimbra. O nome de Rondon ecoara em todo o Estado, como realizador de uma façanha que o imortalizou como benfeitor de sua terra, ligando pelo telégrafo todos os recantos de Mato Grosso. Assim, foi com entusiasmo que o jovem Tenente Boanerges aceitou o convite de Rondon, em setembro desse mesmo ano, para integrar a Comissão encarregada da construção do ramal de Cuiabá à cidade de São Luis de Cáceres.
(...) a turma do Tenente Nicolau Bueno Horta Barbosa, que operava ao norte de Juruena, tinha sido atacada pelos índios Nhambiquaras, ficando gravemente feridos pelas flechas dos índios, o tenente Nicolau e seu auxiliar, Aspirante Tito de Barros.
Em face da situação, partiu o Tenente Boanerges rumo ao sertão, acompanhado somente de um guia. Em Salto (rio Sepotuba), uniu-se à comitiva do Tenente Júlio Caetano Horta Barbosa, que partira de Cuiabá com o mesmo destino. A 31 de agosto, chegam os viajantes ao Juruena, encontrando os feridos já fora de perigo. Foi o Tenente Boanerges encarregado da turma de construção da linha, cujos trabalhos tinham sido interrompidos em conseqüência do ataque dos índios. Para a retomada do serviço, - disse o Marechal Boanerges - impunha-se o contado com os Nhambiquaras, senhores absolutos da região. Era necessário um trabalho de aproximação paciente e cuidadoso, a fim de conquistar sua amizade”
(...) Nessa fase de trabalhos da Comissão Rondon, desempenhou o Tenente Boanerges várias funções, quer no serviço de construção e de conservação da linha, quer em outros de natureza administrativa que o retiveram até dezembro de 1922, quando reverteu à tropa.
(...) Em 1927, quando servia no Estado Maior da 1ª Região Militar, atendeu o Capitão Boanerges a novo apelo do General Rondon e retornou ao sertão, desta vez para participar dos trabalhos da ‘Inspeção de Fronteiras’. Iniciaram-se os serviços pela Guiana Francesa, de que nos deu notícia o Autor em seu livro ‘Índios e Explorações Geográficas’, no capítulo ‘Uma viagem ao Oiapoque’. Ainda no mesmo ano, foi o Capitão Boanerges encarregado da inspeção de um setor da fronteira com a Guiana Inglesa, atualmente incorporada ao Território Federal do Rio Branco.
Em 1928, empreendeu-se a segunda campanha pela Comissão, cabendo ao então Major Boanerges chefiar a turma ‘Rio Negro’. Na terceira campanha (1930) coube ao Major Boanerges proceder ao levantamento expedito do rio Paraguai e do seu contribuinte Jauru, desde a foz do rio Apa até o Corixo de San Matias, na Bolívia.
(...) A linguagem do Marechal Boanerges tem a fluência dos veios de água manantes das montanhas e serras daquela vasta região. A sua autoridade de engenheiro geógrafo lhe ditou as técnicas de operação no levantamento dos dados físicos sobre a terra. Daí a segurança e orientação invulgares na interpretação dos fatos; a riqueza das coleções etnográficas, a documentação cinematográfica, entregues ao Museu Nacional, as demais informações de interesse social, atestam a alta significação da sua obra. Ela fica, assim, à disposição dos pesquisadores de ciências sociais como um filão precioso cujo volume e valor bem se pode prever”.
- Início dos trabalhos (03/09/1928)
“Vamos subir o rio Negro, o lendário contribuinte do Amazonas que deu seu nome à antiga Capitania. Devemos, inicialmente, atingir Cucuí, sede de um destacamento militar, para, dali, iniciar o exame da região ocidental do alto rio Negro. Precisamos reconhecer-lhe as vias de acesso, as condições de navegabilidade de seus rios, a natureza de suas margens, o regime de suas águas, a vegetação, etc. Quais os núcleos de povoação existentes seus recursos econômicos, condições de salubridade, seu meio de vida. Mas, como a região é quase exclusivamente povoada por índios, nossa atenção concentra-se no estudo das organizações tribais, de suas instituições culturais, seus hábitos, costumes e tradições.
Para traçar nosso programa de ação e fixar os itinerários a percorrer no âmbito da situação geográfica definida por tratados internacionais, devemos, antes de tudo, tomar por base o Tratado celebrado em Bogotá, a 24 de abril de 1907 entre a Colômbia e o Brasil, posteriormente aprovado por ambos os países ...
(...) organizamos o nosso programa de trabalho da seguinte maneira:
- Subir o rio Negro até Cucuí; retroceder à foz do Xié, subir este rio e identificar o seu afluente Japori ou Tvapori; descer o Negro até São Felipe, na foz do Içana; executar o levantamento deste rio até a boca do seu afluente Cuiari, subir este rio a fim de reconher a foz do rio Pégua e a do sub-afluente do Cuiari, cujos manadeiros contravertem com as do Memachi - águas do Naquieni, na linha divisória; prosseguir no levantamento do rio Içana até a intercessão aproximada do paralelo da foz do Pégua; subir o Aiari e dali passar para o Uaupés, através do varadouro assinalado pela expedição Curt, executando os respectivos levantamentos expeditos; subir o Uaupés, a partir da povoação Iutica até a foz do seu afluente Querari; descer o Uaupés afé a foz. do Papori, subir este rio, atingindo, se possível suas nascentes; descer o Papori para prosseguir no levantamento do Uaupés até a embocadura do rio Tiquié; proceder ao levantamento deste rio e, em seguida, a do baixo curso do Uaupés, fechando em São Felipe, no rio Negro, o circuito ali iniciado”.
- Barcelos (06/09/1928)
“No governo do benemérito estadista Manuel da Gama Lôbo d'Almada, o rio Negro, teve sua mais brilhante fase de progresso. Barcelos guarda os restos mortais desse patriota, ali falecido em 1799. Presentemente, a missão. Salesiana do rio Negro procura reerguê-la, tendo instalado escola e oficinas”.
- Cucuí (24/09/1928)
"Começamos a subir o cerro. Uma formidável rocha granítica de 50° de aclive. Os homens sobem descalços. Mando colocar o cabo (corda de 1/4" com 60 metros) de que me preveni. (...) Às 12 horas, iniciamos a marcha por entre pedras e desvãos do mais difícil e complicado acesso. A todo momento é preciso recorrer ao cabo ou à ajuda dos práticos para se passar de uma pedra para outra. O granito úmido, coberto de musgo, escorrega como sabão! Às 12 horas e 30 minutos, atingimos uma gruta que nos forneceu água fresca e cristalina. Descansamos meia hora, dividindo entre os 11 excursionistas uma lata de goiabada que levávamos.
Prosseguindo, fomos assaltados por dezenas de morcegos que irrompiam da escuridão por onde nos arrastávamos às apalpadelas. Meia hora após estávamos no dorso da montanha, contemplando o belíssimo panorama que de lá se descortina: o rio Negro espalhando-se, para o Sul e para o Norle na planície verde, e indefinida que irmana os três países lindeiros. Para o Sul, as serras de Curicuari e de Dimiti. As de Tunuí no Içana para SE, o serro Caparro para E e para NE, azulando no horizonte, as serras do Cabori e a Tapirapicó, da cordilheira Parima.
Às 14 horas e 20 minutos, iniciamos o regresso, alcançando às 18 horas e 40 minutos, o igarapé onde retomamos as ubás. Às 20 horas e 20 minutos, aportávamos, sem novidade, ao nosso acantonamento de Cucuí”.
- Rio Içana, Jacaré-Ponta (25/10/1928)
"Mais acima, à margem esquerda, saltamos no sítio Jacaré-ponta do velho Tomás, uma casa em ruínas, escorada na frente e na retaguarda! Em sua pobre morada, o velho índio recebeu-nos com amabilidade e convidou-nos a tomar assento num banco a seu lado. No interior da casa, sua mulher entregava-se ao trabalho de ralar mandioca, enquanto duas moças se encarregavam de torrá-la em um pequeno forno de ferro. Por falta de vasilha para o depósito da massa, esta era depositada no próprio chão, provàvelmente forrado com folhas, porque com folhas estava ela coberta. A velha e as duas moças não se incomodaram com nossa presença; continuaram nos seus serviços e a que estava virando a farinha no forno permaneceu de costas, como estava. No teto, sempre os malditos feixes de adabis”.
Adabi - os índios da tribo Uanana costumam vergastar-se reciprocamente com o adabi nas festas de Jurupari. O sacrifício busca fazer com que se afugentem as iras de ‘Jurupari’, o Moisés Tapuio
- Rio Içana, Aracu-cachoeira (30/10/1928)
“Aliás, o casamento entre os índios da região não se faz por amor. É mesmo difícil saber se há este sentimento por parte dos jovens que se casam. Porque em geral, os casamentos se fazem por combinação dos tuxauas que trocam por conveniência recíproca, rapazes e moças; ou então, mediante verdadeiros assaltos à mão armada, em que os guapos mancebos arrebatam as suas preferidas, violentamente, por entre vozerios, imprecações e pauladas. E o interessante é que passada uma semana, a constituição do novo lar é festejada em animado cachiri, com o infalível comparecimento da família da jovem. Tudo acaba bem, entre um volteio de dança, ao som do carriço e uma boa dose da saborosa bebida fermentada do índio. E não é de fácil solução este problema!
O Índio não se casa com parentes. Um tariana pode casar-se com uma uanana, uma tucana ou uma pira-tapuia. Os tucanos dizem-se parentes dos piratapuios, de modo que entre eles não é permitido enlace matrimonial. Mas um tucano pode, entretanto, casar-se com a filha de uma tucana, mulher de um tariana, ou de uma tariana, por exemplo, porque, o que prevalece no caso é o sangue paterno. A mulher é um ente sem regalias”.
- Rio Uaupés, Iutica (12/11/1928)
“Desde o dia 12 o pessoal de Iutica se movimentava para o preparo das festas. Uma turma de homens partira para a mata para cortar ‘tururi’ de cuja entrecasca se preparam as máscaras de dança. As mulheres ocupavam-se com o fabrico da farinha e do beiju para o preparo do ‘cachiri’. A faina no interior das casas era grande.
As ‘cunhãs’ (mulheres), as ‘cunhamucus’ (moças), e as ‘cunhatãs’ (meninas) despejavam pesados baquitéis carregados de raízes de mandioca, de cará e batata doce. Umas descascavam os preciosos tubérculos, enquanto outras os trituravam nos ‘iuicés’ (ralo de sílex entalhado em madeira) sentadas no chão. Com o apóio das coxas mantinham os artísticos ralos e com as mãos assim libertas se entregam ao vai-e-vem incessante, duplicando os braços. Outras assavam os beijus de mandioca ou tapioca, ou preparavam a massa da batata ou do cará, para o ‘cachiri’. E grande coxos e formidáveis ‘camotis’ se enchiam da preciosa mistura a ser fermentada.
Os toros de ‘tururi’, entravam, por sua vez, em atividade. Primeiramente, eram cuidadosamente raspados. Depois, com uns cacetinhos de madeira especial, nos quais se faziam frisos longitudinais, os índios batiam de encontro à superfície exterior dos toros, girando-os, de modo a desprender a entrecasca. Esta desligava-se inteiramente dos toros. Em seguida, eram levadas ao rio para serem lavadas e se tornarem macias. Feito isto, abria-se bem o tecido para aumentar-lhe as dimensões, sem prejuízo da contestura das malhas.
Outros os vestiam em manequins adrede preparados para receberem a forma do corpo a que se destinavam. Depois de secas, passavam a receber as pinturas em que predominavam as tintas do urucum, do ‘caiuru’ e do jenipapo. O índio não confia na leveza da mão. Em geral, tem molde para tudo e todos os desenhos das suas máscaras como as pinturas do próprio corpo obedecem a modelos que uns passam a outros. Entretanto, sempre há um especialista que é consultado a respeito no remate de uma máscara ou na disposição de um ornato”.
- Rio Uaupés, Iutica (21/11/1928)
“Encontramos os uananas em franca atividade nos preparativos para a festa. As máscaras recebiam as pinturas e os que as tinham prontas, desfiavam a casca de ‘matamatá’ para o preparo das franjas com que se confeccionam as saias. Outros entretinham-se no arranjo dos enfeites para a dança da ‘acangatura’ e as ‘cunhãs’ e as ‘cunhamucus’ davam última de mão no preparo do ‘cachiri’. O tuxaua nos comunicava, constantemente, a marcha dos preparativos. Concluídos estes, foi marcada a festa para a manhã de 21. Às 9 horas, teve ela início, com a dança das máscaras. Nesta, só os homens e alguns ‘curumis’ tomam parte. Metidos na vestimenta feita de entrecasca de ‘tururi’ e casca de ‘matamatá’, levando aquela a pintura e a máscara que representavam os bichos da floresta, marcharam os índios em uma só fila rumo à grande maloca. Ao aproximarem-se desta, correram para ela, e, num vozerio infernal, batiam os paus que empunhavam de encontro ao revestimento de palha da parede, penetrando, em seguida, no vasto salão.
A onça marchava na frente e parecia ser o personagem mais importante. O sapo, o papagaio, a borboleta, o rouxinol, o aracu, o araripirá e o tapuru formavam-Ihe o cortejo. Não consegui interpretar os detalhes dessa interessantíssima dança, em que, ora os papagaios, ora as borboletas, marchavam solenemente, entoando cânticos alusivos às cenas que se desdobravam. O sapo, o rouxinol e os outros bichos revezavam-se nas danças e cânticos; mas, incontestàvelmente, os papagaios e as borboletas, eram as figuras que mais predominavam. A onça, de vez em quando, aparecia e fazia um estardalhaço interessante. Nos intervalos, grupos diversos divertiam-se com a dança do carriço, alegrando a assistência. Ela é assim chamada por que os rapazes, ao mesmo tempo que dançam, arrastando uma mulher, tocam a flauta de pan, composta de 4, 5 ou 6 carriços. Estes são feitos de talos de bambu cujos comprimentos variam de 6 a 20 centímetros, de grossura de ½ a 2 centímetros. Os índios empunham a flauta com duas mãos e correndo o beiço pela escala dos carriços, conseguem emitir desde os mais graves, aos mais agudos sons. A música é pobre: só distingui dois temas que se revezavam. Grupos de 3 ou 4 pares formando fila dançavam incessantemente num canto da maloca ou no pátio; ou então, formavam roda e a dança passava a ter novo tema.
Os rapazes enfeitavam a fronte com um diadema e os quadris com ramos de árvore, um espelho ou outro penderucalho qualquer. As mulheres vestiam somente saia, trazendo algumas os braços e o busto com lindos desenhos feitos de ‘caiauru’ ou urucum.
A assistência no interior da maloca era grande: os homens sentados em uma só fila à direita e as mulheres à sua frente, à esquerda. No centro, dançavam os grupos dos carriços. E o interessante é que as mulheres é que escolhiam os seus pares, quer na dança dos carriços, quer na da ‘acangatara’.
Esta é mais solene. É uma festa guerreira, de um simbolismo impressionante. Nela tomam parte todos os índios e índias formando uma roda enorme. Os homens se paramentam todos: pintam o corpo todo de urucum, colocam na cabeça a ‘acangatara’ (lindo diadema feio de penas de arara, de tucano e de outros pássaros); completam esse ornato com ‘aigraitte’ e pente feito de fibra de piaçaba; no pescoço, penduram o ‘itá’, preso a um colar de sementes (quiquica); no busto - duas ou três voltas de dentes de onça ou de porco do mato - e chocalhos nos tornozelos. Os taxauas empunham a lança e o escudo. As mulheres pintam todo o corpo e as que possuem tangas de miçangas, despem-se inteiramente. Formada a grande roda, tem início a festa, entoando-se por muito tempo uma espécie de ladainha em homenagem ao ‘caapi’. A seguir, começa propriamente a dança. A roda é agora uma cadeia, em que uma mulher fica entre dois homens. Lentamente oscila a cadeia para a direita, para a esquerda, para frente, para a retaguarda, sob cânticos guerreiros que empolgam os assistentes.
De quando em quando, uma mulher - que permanece no centro da roda - caminha soltando um grito estridente e lúgubre que perdura de 30 a 40 segundos. E entre a dança do carriço e a da ‘acangatara’, decorreram os festejos durante toda a noite desse dia, terminando às 9 horas da manhã seguinte. Foram 24 horas seguidas de dança que escoaram dentro da maior ordem e alegria”.
- Rio Tiquié, Floresta (24/12/1928)
“Com o tuxaua Caetano, adquirimos um ‘cuacorô’ (em deçana) e ‘hatô’ (em tucano) - vasilha feita de ‘jamaru’ (espécie de cabaça), com bocal de ‘mirapiranga’ e chupeta de tíbia de jacamin - com que os Índios sorvem o ‘ipadu’. Como se sabe, o ‘ipadu’ é um tônico excitante e poderoso feito de folhas de coca reduzido a pó finíssimo e a que costumam adicionar cinza de folha de embaúba. Depois de torrar as folhas da coca - que chamam ‘ipadu’ ou simplesmente ‘padu’ - levam-nas a um pilão feito do ‘mirapiranga’ - que é uma das melhores madeiras de lei ¬onde são reduzidas a pó.
(...) Observei que o ‘ipadú’ é usado só pelos adultos e de preferência pelos velhos que fazem a roda, passando, de um a um, o ‘hatô’ ou ‘patuga’, como os gaúchos o fazem com o chimarrão”.
- Rio Tiquié, Pari-cachoeira (25/12/1928)
“(...) os índios do Uaupés e afluentes dão grande apreço ao ‘itá’. Consiste este ornato em um penduricalho feito de quartzo leitoso que pode ser de 8 a 10 centímetros de comprimento por 3 de diâmetro - usado pelos homens - ou 3,5 por 1,5, usado pelos curumis. A esta pedra dão a forma cilíndrica, polindo-a de encontro às lajes de granito, o que consome largo tempo. Depois de inteiramente lisa, abrem-lhe um orifício no sentido do eixo maior, de modo a permitir a passagem de um fio no qual costumam enfiar contas (‘quiquica’), improvisando, assim um colar. O seu uso vem desde os mais remotos tempos e é muito generalizado no Tiquié, fazendo parte da ‘toilette’ com que os tucanos recebem as visitas. No Uaupés, vimo-lo entre os uananas, na ocasião das festas de Iutica, e, entre os tarianos, só os vimos nas coleções das quais aliás estão se desfazendo pelos novos hábitos contraídos pela influência dos padres. Pois em Pari-cachoeira, depois de se refazer da surpresa da nossa visita, o tuxaua José apareceu com o colar e o penderucalho (...)”
Mais de sete décadas antes o ornamento já fascinara Alfred Russel Wallace que descreve o adereço, no capítulo X (Subindo o rio Uaupés pela primeira vez), de suas ‘Viagens pelos rios Amazonas e Negro’:
“Viam-se agora diversos índios usando seu mais típico e precioso ornamento, uma pedra branca, opaca e cilíndrica, parecendo mármore, mas que é na realidade um quartzo imperfeitamente cristalizado. Essas pedras têm entre 4 e 8 polegadas de comprimento e mais ou menos uma polegada de diâmetro. Têm base redonda e extremidade superior achatada, sendo esta atravessada por um furo, dentro do qual passam um cordão para poder pendurar o adorno ao pescoço. Deve ser dificílimo confeccionar este ornamento, sendo mesmo incrível que consigam perfurar uma substância tão dura sem qualquer instrumento de ferro adequado para isso. Para fazê-lo, segundo me disseram, usam o broto flexível e pontiagudo da bananeira silvestre, girando-o e atritando o local com areia fina e água. Não duvido disso e nem de que tal trabalho leve anos, conforme também me disseram. Fico pensando, então, no tempo que deve ter sido gasto para furar a pedra que o tuxaua usava como distintivo de sua autoridade, pois era de dimensões bem maiores. Além do mais, o orifício desta era longitudinal, permitindo a seu dono usá-la horizontalmente sobre o peito. Informaram-me que os adornos desse tipo ocupam o trabalho de duas vidas! Essas pedras são trazidas de grandes distâncias rio acima, provavelmente da região das cabeceiras, na base dos Andes. Em virtude disso, são altamente valorizadas, sendo muito raro encontrar-se um proprietário que possa ser induzido a desfazer-se delas. Quanto aos chefes, nem se fala!”
* Fonte: SOUSA, Marechal Boanerges Lopes de - Do Rio Negro ao Orenoco - Brasil - Rio de Janeiro, 1959 - Ministério da Agricultura.
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