Com o fanatismo dos convertidos, os banqueiros (cuja imagem pública tende a assumir os traços dos bankster, banqueiros-gangster) solicitam a estatização de suas perdas, o que poderia ter conseqüências também para a individualização dos ganhos. Não terá começado a abrir caminho, nos centros anglo-saxões do laissez-faire, aquela forma chinesa de economia privada direta do Estado, que até agora sempre foi ridicularizada, demonizada, mas também temida? Como se explica essa capacidade dos riscos financeiros globais de produzir agitações políticas?
O artigo é de Ulrich Beck, publicado no jornal italiano La Repubblica, 22-10-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A sociologia da sociedade mundial do risco tem uma resposta pronta: a aproximação aos riscos catastróficos (mudanças climáticas, crise financeira, terrorismo) comporta a antecipação de um estado de exceção sem fronteiras que se dará no futuro próximo. As respostas a esse estado de exceção e as responsabilidades necessárias para enfrentá-lo não podem limitar-se ao âmbito nacional, porque isso não envolve mais as nações sozinhas, mas assume uma dimensão cosmopolítica, abalando convicções aparentemente eternas e dando vida a novas comunidades, a novos conflitos e a novas ocasiões de ouro para os atores mais diversos.
Neste cenário se distinguem duas variantes, que possuem uma importância fundamental para a teoria política da sociedade mundial do risco: de um lado, a antecipação das catástrofes causadas pelos efeitos colaterais não intencionais – mudanças climáticas, crise econômica mundial; de outro, a antecipação de catástrofes intencionais, como no caso do terrorismo suicida que opera em nível transnacional ou cosmopolítico que, bem ao contrário, cancela a distinção entre amigo e inimigo e nasce da independência radicalizada do mercado. Talvez, o aspecto mais relevante dos riscos globais (economia mundial, mudanças climáticas, terrorismo) está no fato de que, no lugar das fronteiras entre os Estados nacionais, entra em cena a falta de fronteiras do estado de exceção, tanto em nível social, quanto em nível espacial ou temporal.
Sobre o plano social, o estado de exceção não conhece fronteiras, a partir do momento em que, aqui e agora, abre-se um novo capítulo político-financeiro da política interna mundial. Isso fica evidente na competição entre os governos pelo melhor plano de salvação do mundo, em que ao vencedor – como demonstra o exemplo do primeiro ministro britânico Gordon Brown – espera a ressurreição política no espaço nacional e internacional, quase como uma nova fênix que renasce das cinzas. Abre-se um jogo de poderes que muda as regras aparentemente férreas da política internacional, um jogo que está no meio do caminho entre a política do cassino e a roleta russa e no qual são renegociadas as obrigações e as regras – não só aquelas que se encontram entre a esfera nacional e a esfera internacional, mas também aquelas que regulam as relações entre a economia global e o Estado, entre a economia global e as organizações supranacionais, assim como aquelas que valem entre as aspirantes potências econômicas mundiais da China, da América do Sul e da Índia, de um lado, e os Estados Unidos e a União Européia do outro. Nenhum jogador ou adversário único pode vencer sozinho, tudo depende das alianças. Assim como um governo sozinho não pode combater o terrorismo global, da mesma forma que um governo sozinho não é capaz de combater as mudanças climáticas, nem de enfrentar a iminente catástrofe financeira. Vice-versa com o político nacional – por exemplo, o ministro alemão da economia Michael Glos –, que procura responder ao colapso da economia mundial permanecendo no interior do recinto nacional, parecendo o bêbado que, em uma noite escura, procura encontrar a carteira perdida sob o facho de luz de um poste. À pergunta: “Perdeu aqui mesmo a sua carteira?”, responde: “Não, mas pelo menos posso procurá-la com a luz desse poste”.
Em outros termos, os riscos financeiros globais poderiam também produzir failed states – até mesmo no Ocidente. A estrutura estatal que toma forma nas condições da sociedade mundial do risco poderia ser caracterizada mediante os conceitos da ineficiência e do autoritarismo pós-democrático.
Sobre o plano espacial, o estado de exceção não conhece fronteiras porque no mundo ultra-interdependente, as conseqüências dos riscos financeiros se tornam incalculáveis e não compensáveis. O espaço de segurança da primeira modernidade, isto é, da modernidade dos Estados nacionais, não excluía danos (até de proporções notáveis), mas estes eram considerados compensáveis. Para as suas conseqüências negativas, tinha-se remédio (com o dinheiro etc). Quando, porém, o sistema financeiro mundial se abala, quando o clima é irreversivelmente mudado, quando os grupos terroristas dispõem já de armas de destruição em massa, agora já é muito tarde. Frente a essa nova qualidade da ameaça à humanidade, a lógica da compensação perde a sua validade e – como argumenta François Ewald – é substituída pelo princípio da tutela mediante prevenção. Não pode acontecer – portanto, um juízo racional fundado sobre as experiências é o que realmente deve ser impedido!
A incalculabilidade dos riscos financeiros deriva da extraordinária importância do não-poder-saber. Ao mesmo tempo, porém, a aspiração do Estado ao conhecimento, ao controle e à segurança deve ser renovada, aprofundada ao extremo. Aqui a ironia (para usar uma expressão moderada) de controlar qualquer coisa que ninguém pode saber o que seja e como se desenvolve, sem ser capaz de prever quais conseqüências e efeitos colaterais a terapia milionária prescrita pela política que tateia no escuro poderá produzir. Mas por que lá onde a economia do equilíbrio fracassa o Estado deve estabelecer, de modo decisivo, o que é oportuno fazer? A essa pergunta, há uma resposta sociológica convincente: porque a promessa de segurança é o ponto de força do Estado moderno, que não é anulado pelo não-saber, mas, pelo contrário, é por ele ativado.
O que acontece se o hybris das medidas projetadas dá em nada ou obtém o contrário dos resultados esperados? A essa pergunta, há uma resposta cínica e realística: com a ineficácia da ação política, cresce o perigo e, portanto, a emergência para todos – com a conseqüência paradoxal de que a ação errada pode se reabilitar graças à emergência que torna mais graves os seus erros. Talvez, o perdão dos erros cresce com os próprios erros, amplificados pelo estado de emergência no qual as pessoas transitam.
A menor proveniência das fronteiras temporais do estado de exceção é devida, além disso, à incalculabilidade do perigo. Todos esperam que, com a reação em cadeia à qual estamos assistindo, a espiral ao contrário seja unida ao seu ponto extremo – salvo se depois se constata o imaginável, isto é, que as coisas vão ainda pior. Desse ponto de vista, os créditos “tóxicos” no sistema das finanças mundiais se parecem um pouco com o perigo de avalanche por causa da queda de neve que não acaba mais: está-se consciente que há o risco, mas não se sabe precisamente quando e onde ocorrerá a avalanche.
Ao mesmo tempo, o perigo percebido, que arrisca arrastar a todos no abismo, produz uma dinâmica de aceleração da reação e, por isso, um estímulo ao consenso que pode saldar a fratura entre o desejo, precisamente, do consenso e a urgência de tomar uma decisão política imediata, com a conseqüência de que, em nível global da política interna mundial, torna-se certamente possível o que, no espaço político nacional, é totalmente inconcebível, ou seja, o fato de que, a despeito do princípio de unanimidade e da participação de todos os Estados – e cujo interesse, como se percebe, conflitem dramaticamente –, podem ser tomadas decisões vinculadas em nível de política financeira global sob o diktat de uma urgência absoluta. Por quê? Justamente graças à antecipação da catástrofe no presente, isto é, graças à globalidade da percepção do risco, favorecida e ilustrada pelos mass-media. Tal percepção abre espaços de ação para a transnacionalização co-estatal dos mercados financeiros, dos provimentos para a tutela do meio ambiente e, não último, também para a transnacionalização das obrigações militares e de polícia em vista ao combate do terrorismo (isto é, coisas de valor político muito diferentes).
Todavia, esse poder – historicamente novo – da percepção global dos perigos é pago ao preço da sua eficácia a curto prazo. No momento em que tudo depende da sua percepção através da mídia, a legitimação da ação política mundial em força dos perigos globais chega só até onde a atenção obtida pela mídia também chega.
O que provoca um choque antropológico naqueles que nasceram na sociedade mundial do risco não é mais a falta de uma firme referência metafísica – o ausente Godot de Beckett – ou a visão horrorífica de um mundo totalmente controlado, exposta por Foucault, nem o mudo despotismo da racionalidade, que assustava Weber. O que hoje angustia os contemporâneos é o temor de que o tecido das nossas dependências materiais e das nossas obrigações morais possa se rasgar e que o delicado sistema funcional da sociedade mundial do risco possa falhar. Assim, tudo é posto de cabeça para baixo, da cabeça aos pés: o que para Weber, Adorno e FoucaultLuhmann) ou na fórmula litúrgica “Mais mercado, por favor!”. era um cenário de horror – a aperfeiçoada racionalidade do controle que domina o mundo administrado – é para as vítimas potenciais das crises financeiras (isto é, para todos nós) uma promessa: seria bom se a racionalidade do controle controlasse; seria bom se somente o consumismo e o humanismo nos aterrorizassem; seria bom se se pudesse fazer com que o sistema voltasse a funcionar sem problemas, confiando em sua “autopoiese” (
O que há de bom no mal? Há o fato de que o egoísmo dos Estados nacionais deve abrir-se à dimensão cosmopolítica, se deseja salvar-se. Mas essa é apenas uma entre as muitas possibilidades e pressupõe que se aprenda com a antecipação de catástrofes pragmáticas. Uma outra possibilidade é que estas não ocorram.
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