"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

terça-feira, outubro 28, 2008

Venezuela, Argentina e Equador. Centro nevrálgico da crise na AL

Instituto Humanitas Unisinos - 26/10/08

A violência com a qual a crise financeira global chegou por aqui nos últimos dois meses pode facilmente levar à conclusão de que o Brasil está entre os emergentes mais afetados pela turbulência nos mercados. Conclusão verdadeira ou falsa? A resposta depende de onde se coloca o ponto de partida da crise.

A reportagem é de Érica Fraga, editora sênior de América Latina da consultoria britânica Economist Intelligence Unit., e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 26-10-2008.

As fortes perdas amargadas pelo mercado brasileiro (o acionário, o cambial ou de dívida) nas últimas semanas foram, sem dúvida, devastadoras. Mas considerar os dias sombrios de outubro deste ano como o início da maior crise financeira desde a Grande Depressão parece errado. Os problemas no mercado de hipotecas norte-americano começaram, de fato, lá pelos idos de agosto de 2007, embora sua dimensão dramática tenha sido desvendada gradualmente desde então.

Se considerados os últimos 13 meses desde que a crise começou -quando os mercados financeiros globais já vinham acusando o golpe do que estava por vir-, o Brasil aparece, na verdade, entre os emergentes que menos sofreram. Desde o fim de agosto de 2007, por exemplo, o Brasil é, depois do Chile, o emergente cujo risco país, medido pelo banco JP Morgan, menos subiu (considerando um grupo de 11 grandes economias).

Isso não quer dizer que o indicador brasileiro não tenha disparado: o salto foi de consideráveis 216%, para 646 pontos, no fechamento da última sexta-feira. Mas os riscos de México, Rússia e África do Sul, por exemplo, subiram mais de 400%, o da Hungria saltou 500% e os de Argentina, Venezuela e Equador aumentaram entre 250% e 350% mas já operam em níveis indicativos de calote de dívida soberana. Essa história se repete de forma parecida, embora não idêntica, nos outros mercados.

A lista de países mais atingidos com a crise financeira global ao longo do último ano mostra que fundamentos macroeconômicos sólidos fazem a diferença para investidores, ainda que no auge do desespero (caso das últimas semanas) ainda prevaleça o chamado comportamento de manada.

Focos

O maior foco de risco no mundo emergente está no Leste Europeu, onde um grupo de países exibe indicadores nada animadores, como altos déficits em conta corrente, elevado estoque de dívida externa e, em alguns casos, bolhas no mercado de crédito. Entre os mais vulneráveis, estão Hungria, Ucrânia, Bulgária e Romênia. Esses países terão o desafio duplo de conseguir recursos para cobrir enormes necessidades de financiamento externo e lidar com uma forte desaceleração nos mercados domésticos de crédito em um ambiente global em que a liquidez parece ter evaporado. Em outras palavras, correm risco real de passar por um colapso sério.

Embora na América do Sul, problemas como déficits significativos em conta corrente e necessidades gigantes de financiamento externo pareçam ser coisa do passado, depois do forte ajuste da última década, a região também tem seu centro nevrálgico formado por Argentina, Equador e Venezuela. Não por acaso os riscos soberanos dos três países operam em níveis de default (calote).

Em comum, o trio tem governos que adotaram políticas econômicas heterodoxas, que foram mantidas até agora com algum grau de sucesso -pelo menos em termos de elevados gastos sociais, que, nos casos de Argentina e Venezuela, ajudaram a impulsionar taxas robustas de crescimento econômico em anos recentes.

Mas a crise atual está provando que o modelo de altos subsídios governamentais, controles de preços e elevado gasto público (entre outras muitas medidas altamente intervencionistas) só era sustentável em tempos de bonança externa. Tarifas sobre exportação representam cerca de 13% da arrecadação tributária argentina e cresceram de forma robusta em anos recentes. No Equador, somente na primeira metade de 2008, a renda do petróleo para os cofres públicos aumentou 268%, atingindo US$ 4,7 bilhões (o que equivale a mais de 40% da arrecadação total do governo).

Na Venezuela, os dados que mostram a dependência da economia da renda petrolífera impressionam: representa metade da arrecadação total do governo, cerca de 95% das receitas do setor exportador e aproximadamente 15% do PIB (Produto Interno Bruto).

Sem a forte demanda global, que levou a um boom no setor agrícola argentino e por um bom tempo manteve a popularidade do casal Kirchner nas alturas, e sem os preços estratosféricos do petróleo, que sustentaram as políticas fiscais expansionistas de Hugo Chávez e, mais recentemente, Rafael Correa, o modelo econômico dos três países ameaça ruir.

O resultado disso vai ser uma inevitável forte desaceleração econômica na Argentina e na Venezuela, que, dados os níveis quase asiáticos de crescimento em anos recentes, será sentida como recessão por um amplo segmento das populações locais, principalmente os mais pobres. Enquanto no Equador a economia deverá continuar crescendo de forma módica.

Mais riscos

Mas os riscos não param por aí. O perigo real de um novo calote da dívida pública externa pode rondar a Argentina e o Equador em 2009. Um forte ajuste fiscal pode ajudar a evitar o fim dramático. Mas os governos populistas dos dois países querem evitar isso a todo custo. Isso ajuda a explicar a mais recente tentativa do casal Kirchner de acabar com o regime de previdência privada do país e transferir seus fundos de aproximadamente US$ 30 bilhões de volta para os cofres do Estado.

No caso da Venezuela, acredita-se que, com o petróleo em níveis próximos de US$ 75 o barril (que deverá ser a média de 2009), o país corre risco de voltar a amargar um déficit em conta corrente. Sem falar nos efeitos devastadores para o ambicioso programa de gastos de Hugo Chávez, tanto na própria Venezuela quanto em outros parceiros latinos (como Bolívia e Nicarágua).

Uma lição da crise até agora é que anos de políticas macroeconômicas responsáveis vão ajudar a, pelo menos, amenizar os seus efeitos em países como Brasil e Peru. Outros como Argentina, Venezuela e Equador correm o risco de continuar pagando o preço alto da crise por alguns ou muitos anos depois que o furacão atual tiver passado. Mas isso não é boa notícia para ninguém na região. Nos primeiros oito meses de 2008, juntas, Argentina e Venezuela absorveram mais de 10% das exportações brasileiras.

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