Publicado por Ricardo Queiroz Pinheiro
Daniel Steinvorth e Bernhard Zand
Fonte: Der Spiegel
Por 1.300 anos, os muçulmanos estão à procura de uma forma de governo que seja certa para eles. Há parlamentos e às vezes até mesmo grupos de oposição política em muitos países muçulmanos, mas de modo geral as decisões políticas são baseadas em acordos acertados entre grupos tribais e famílias.
Se a democracia já teve amigos nos países de língua árabe, foi entre os monarcas do Kuait. Em 1752, quando a era do absolutismo esclarecido estava apenas começando na Europa, um homem de nome Sabah bin Jaber se tornou o emir de uma população beduína conhecida como al-Utoob.
Ele não foi levado ao poder por assassinato, revolução ou guerra. Ele foi eleito. Seus descendentes, os Al Sabah, continuam governando o Kuait até hoje e preservaram a tendência digna de nota de deixar sua população votar.
O país elegeu sua primeira assembléia legislativa em 1938. Após a independência em 1961, ele elegeu um conselho constituinte. Após ser libertado da ocupação iraquiana em 1991, os kuaitianos elegeram uma nova assembléia nacional. Há dois anos, as mulheres pela primeira vez tiveram direito de votar. Os membros da assembléia nacional às vezes não ficam no cargo por muito tempo. Mas não por motivo de incompetência. Com freqüência é porque o governo executivo os considera competentes demais: a única responsabilidade da assembléia nacional do Kuait é aprovar legislação. Ela determina quanto é pago ao emir. E ela tem o direito de questionar e demitir ministros, um privilégio do qual faz amplo uso.
O Kuait é o país mais democrático no mundo árabe.
Em 17 de maio deste ano, o emir convocou uma eleição, necessária por ele ter dissolvido a assembléia nacional em março, após uma obstrução política que durou meses. Uma agitada campanha eleitoral se seguiu. Os distritos eleitorais foram redesenhados para dificultar que líderes tribais estreitamente relacionados influenciassem o comportamento dos eleitores ou promovessem fraude. A televisão e os jornais cobriram os candidatos que concorreriam às cadeiras, incluindo 27 mulheres, algo ainda inconcebível na vizinha Arábia Saudita, de cujas regiões desérticas vieram os ancestrais beduínos dos atuais kuaitianos. No parecer dos observadores internacionais, a eleição foi livre, justa e transcorreu sem problemas.
Mas quem ganhou? Como na maioria das eleições realizadas nos últimos anos entre o Cairo e Riad, os territórios palestinos e Bahrein, foram os radicais islâmicos que venceram - neste caso os salafistas, defensores particularmente radicais do Islã político na região do Golfo. Entre eles estão homens como Hassan Jowhar, um representante da assembléia nacional que notou com satisfação, na sessão de abertura, que nove membros de seu grupo deixaram o recinto por uma porta porque duas ministras entraram por outra porta sem usar o lenço de cabeça. "Alguns de nós têm suas reservas", ele disse. "O governo deve aceitar isso."
Nathan Brown, um cientista político do Fundo Carnegie para a Paz Internacional, em Washington, prevê que a nova assembléia nacional "provavelmente será mais confrontadora do que a que está de saída. O resultado será um aprofundamento do impasse político entre o governo e o parlamento na ordem política mais democrática do Golfo. (...) A longa crise política não violenta no Kuait há muito é ofuscada por conflitos mais dramáticos e sangrentos. Mas a ameaça a uma das experiências mais importantes da região é real".
Por décadas, o Kuait foi o mais atraente dos Estados do Golfo, um destino para banqueiros e engenheiros assim como para trabalhadores convidados do Egito, Indonésia e Paquistão. O Kuait perdeu terreno política e economicamente e não são poucos os que acham que a democracia é a grande culpada por isso.
O empresário Yassin al-Shammari, 57 anos, é um dos que vêem dessa forma. Ele passou de carro pela assembléia nacional em Al Kuait com olhar de desprezo em seu rosto, sua reação a um dos prédios parlamentares mais belos do mundo, construído nos anos 70 pelo arquiteto dinamarquês Jørn Utzon, que também projetou a Ópera de Sydney. "Um lugar de discussão inútil", resmungou Al-Shammari. Como muitos de seus conterrâneos, ele olha com inveja para Dubai, Doha e Abu Dhabi, onde o governo dos xeques não precisa se preocupar com parlamentos ou oposição política.
Momento difícil para a democracia kuaitiana
O Kuait continua sendo um país rico e seria uma atenuação descrever sua classe média como bem desenvolvida. A renda média per capita de cerca de 1,2 milhão de kuaitianos fica entre a da Suíça e a da Alemanha. O país não é ameaçado por divisões étnicas ou religiosas como as encontradas no Iraque e no Líbano. Os kuaitianos continuam profundamente gratos pelo fato de há 17 anos os Estados Unidos terem libertado o país da ocupação militar de Saddam Hussein.
Se a democracia está enfrentando dificuldades em país amplamente abençoado com prosperidade, estabilidade e tolerância política como o Kuait, o que se pode esperar de outras partes do mundo islâmico? Que futuro terá no Irã, cujo Parlamento é cenário de debates animados, mas que não decide nada; na Indonésia, onde existe uma forma moderada do Islã em um sistema relativamente democrático; na Região do Golfo e no Norte da África, onde tribos e famílias governam em vez de partidos e sindicatos trabalhistas?
Os Estados Unidos, que pregam as maravilhas da democracia no Oriente Médio desde os ataques de 11 de setembro de 2001, não está facilitando as coisas para os defensores desse modelo político aqui e nas regiões vizinhas. "Desde a queda do Iraque, a própria palavra 'democracia' passou a ter um gosto radioativo", disse o ativista de direitos humanos saudita, Ibrahim Mukaitib. Ele disse que os sauditas instruídos vêm até ele e perguntam por que a democracia parlamentar é supostamente melhor do que os outros sistemas, quando governos democráticos dos Estados Unidos e do Reino Unido cometeram o erro colossal de ocupar o Iraque?
Não é preciso dizer, a guerra contra o terrorismo e a percepção disseminada no Ocidente de que Islã e terrorismo são a mesma coisa e não ajudam a promover a reputação da democracia no mundo islâmico. Por menos que a classe média da Turquia, as elites nos países do Golfo ou os estudantes no Irã tenham em comum com os jihadistas da Al Qaeda, uma tradição religiosa de 1.400 anos de Islã é uma força unificadora que vai além de suas diferenças.
Eles também compartilham um senso de amargura pelo fato da conversa de "democratização do Oriente Médio" ter cessado em conseqüência de o lado errado estar vencendo as eleições. Este foi o caso no início de 2006, quando o Hamas venceu nos territórios palestinos e, pouco depois, quando a Irmandade Muçulmana conseguiu quadruplicar o número de cadeiras que tinha no Parlamento egípcio. Nos foi recordado que a democracia às vezes leva ao poder pessoas que não são democratas, um dilema não desconhecido na história européia. A euforia provocada no Ocidente pela Revolução do Cedro no Líbano, e o forte comparecimento dos eleitores na primeira eleição pós-guerra realizada no Iraque, em 2005, rapidamente murchou.
Isso levou a um apoio renovado ao governo autocrático do tipo praticado pelo presidente do Egito, Hosni Mubarak, pelo presidente da Tunísia, Zine El Abidine Ben Ali, e pelo rei da Jordânia, Abdullah 2º. A democracia, dizem esses governantes, certamente é uma coisa boa. Mas a democracia também traz caos e o caos deve ser evitado. Essa é a lição que foi aprendida com o Iraque e, para eles, a estabilidade tem prioridade em relação à democracia.
Por que nenhum dos 22 países árabes é realmente democrático e por que a maior dificuldade para encontrar democratas genuínos na Turquia, Paquistão e Bangladesh do que em outros lugares? Os suspeitos habituais são os culpados -uma fraca classe média, um sistema de educação ruim, uma falta de tradição de debater as diferenças políticas? Ou o Islã e a democracia são fundamentalmente incompatíveis?
Os muçulmanos querem democracia com valores religiosos
Resultados surpreendentes foram obtidos por uma pesquisa Gallup, para a qual foram conduzidas entrevistas entre mais de 50 mil muçulmanos em 35 países por um período de seis meses. Não é a democracia em si que é o problema. Esta é uma forma de governo que 93% de todos os iranianos e 94% de todos os egípcios desejam para si mesmos. Onde há grandes diferenças é em relação ao tipo de democracia que é considerado aceitável.
Segundo John Esposito, co-autor de "Quem Fala pelo Islã?", um estudo baseado na pesquisa Gallup, o que a maioria dos muçulmanos quer é democracia com valores religiosos. Eles não querem perder sua cultura tradicional. Como a maioria dos paquistaneses, por exemplo, eles querem tanto mais democracia quanto mais Islã. Será que poderia ser dito que o que os muçulmanos querem não é uma democracia ocidental, mas sim um tipo de "democracia islâmica"?
Os muçulmanos lidam com a questão da melhor forma de governo e da legitimidade da liderança há mais de 1.300 anos. Os problemas começaram com a morte do Profeta Maomé, em 632. Durante sua vida, este mensageiro de Deus na Terra revelou um sistema de crenças abrangente aos seus seguidores, conquistou territórios, uniu tribos e formou alianças. Mas algo importante que Maomé deixou de fazer foi nomear um sucessor.
O falecimento do profeta, cujo nome significa "digno de louvor", deixou um enorme vácuo e a comunidade muçulmana se viu sem um líder. Quem na comunidade teria autoridade suficiente para ser um guia espiritual dos fiéis e ao mesmo tempo governante de um império que, no século 7, já tinha se expandido para muito além dos limites da Península Árabe?
Sem necessidade de democracia
Para um grupo de fiéis, os xiitas, o primo de Maomé, Ali, era o único herdeiro legítimo. Posteriormente os "shi'at Ali", os seguidores de Ali, se separaram da maioria muçulmana. Outro grupo, os kharijitas, acreditavam que qualquer fiel devoto e capaz poderia liderar os muçulmanos. Um terceiro grupo, a maioria sunita, entendia que o líder da comunidade, o califa, deveria ser da tribo do profeta, mas eleito por uma "shura", um conselho de homens respeitáveis.
Foi assim que uma forma autocrática de governo surgiu, uma que tinha a aparência de legitimidade democrática. O califa se submetia à lei islâmica ("sharia") da mesma forma que todos os outros fiéis. Os muçulmanos citavam versos pertinentes do Alcorão que elevavam a negociação de um meio-termo ao nível de um dever religioso: "E os consulte sobre a decisão. E se decidires algo, então confie em Deus" (Sura 3, verso 159). Dizia-se que se o califa fizesse uso indevido de seu cargo, então a shura poderia depô-lo, apesar disso nunca ter ocorrido.
Egon Flaig, professor de história antiga da Universidade de Rostock, no norte da Alemanha, escreveu que o Islã sunita oferecia "a forma mais bem-sucedida de teocracia na história registrada". Enquanto o representante de Deus na Terra defendesse a verdadeira fé e os sábios islâmicos tivessem a palavra final, não havia necessidade de conselhos, assembléias, eleições ou Constituições. No século 19, Alexis de Tocqueville escreveu que o "maometismo fundiu os poderes religiosos e políticos tão completamente que quase toda atividade na vida civil e política pode ser regulada pela lei religiosa".
Perto do final do século 18, a comunidade muçulmana começou a notar que havia algo errado com o califado. Após séculos de glória islâmica, a campanha triunfante de Napoleão no Egito forneceu uma prova devastadora da superioridade tecnológica do Ocidente. O Império Otomano reconheceu a seriedade da situação e daí em diante começou a enviar seus candidatos a oficiais para a Europa. O treinamento militar que receberam em Paris, Londres, Viena e Berlim seria usado para reformar suas próprias forças armadas. O período subseqüente de reforma governamental e social é tratado na história do Império Muçulmano como Tanzimat.
O primeiro monarca constitucional a existir em um país muçulmano foi criado pelo sultão Abdülhamid 2º, em 1876. A existência de um Parlamento otomano foi abreviada pela declaração de guerra da Rússia contra o "doente do Bósforo" apenas um ano depois. Temendo pela sobrevivência de seu governo, o sultão suspendeu a Constituição e ela não voltou a entrar em vigor durante seu reinado. Uma nova experiência com a democracia era considerada arriscada demais para a estabilidade.
Fonte: Der Spiegel
Por 1.300 anos, os muçulmanos estão à procura de uma forma de governo que seja certa para eles. Há parlamentos e às vezes até mesmo grupos de oposição política em muitos países muçulmanos, mas de modo geral as decisões políticas são baseadas em acordos acertados entre grupos tribais e famílias.
Se a democracia já teve amigos nos países de língua árabe, foi entre os monarcas do Kuait. Em 1752, quando a era do absolutismo esclarecido estava apenas começando na Europa, um homem de nome Sabah bin Jaber se tornou o emir de uma população beduína conhecida como al-Utoob.
Ele não foi levado ao poder por assassinato, revolução ou guerra. Ele foi eleito. Seus descendentes, os Al Sabah, continuam governando o Kuait até hoje e preservaram a tendência digna de nota de deixar sua população votar.
O país elegeu sua primeira assembléia legislativa em 1938. Após a independência em 1961, ele elegeu um conselho constituinte. Após ser libertado da ocupação iraquiana em 1991, os kuaitianos elegeram uma nova assembléia nacional. Há dois anos, as mulheres pela primeira vez tiveram direito de votar. Os membros da assembléia nacional às vezes não ficam no cargo por muito tempo. Mas não por motivo de incompetência. Com freqüência é porque o governo executivo os considera competentes demais: a única responsabilidade da assembléia nacional do Kuait é aprovar legislação. Ela determina quanto é pago ao emir. E ela tem o direito de questionar e demitir ministros, um privilégio do qual faz amplo uso.
O Kuait é o país mais democrático no mundo árabe.
Em 17 de maio deste ano, o emir convocou uma eleição, necessária por ele ter dissolvido a assembléia nacional em março, após uma obstrução política que durou meses. Uma agitada campanha eleitoral se seguiu. Os distritos eleitorais foram redesenhados para dificultar que líderes tribais estreitamente relacionados influenciassem o comportamento dos eleitores ou promovessem fraude. A televisão e os jornais cobriram os candidatos que concorreriam às cadeiras, incluindo 27 mulheres, algo ainda inconcebível na vizinha Arábia Saudita, de cujas regiões desérticas vieram os ancestrais beduínos dos atuais kuaitianos. No parecer dos observadores internacionais, a eleição foi livre, justa e transcorreu sem problemas.
Mas quem ganhou? Como na maioria das eleições realizadas nos últimos anos entre o Cairo e Riad, os territórios palestinos e Bahrein, foram os radicais islâmicos que venceram - neste caso os salafistas, defensores particularmente radicais do Islã político na região do Golfo. Entre eles estão homens como Hassan Jowhar, um representante da assembléia nacional que notou com satisfação, na sessão de abertura, que nove membros de seu grupo deixaram o recinto por uma porta porque duas ministras entraram por outra porta sem usar o lenço de cabeça. "Alguns de nós têm suas reservas", ele disse. "O governo deve aceitar isso."
Nathan Brown, um cientista político do Fundo Carnegie para a Paz Internacional, em Washington, prevê que a nova assembléia nacional "provavelmente será mais confrontadora do que a que está de saída. O resultado será um aprofundamento do impasse político entre o governo e o parlamento na ordem política mais democrática do Golfo. (...) A longa crise política não violenta no Kuait há muito é ofuscada por conflitos mais dramáticos e sangrentos. Mas a ameaça a uma das experiências mais importantes da região é real".
Por décadas, o Kuait foi o mais atraente dos Estados do Golfo, um destino para banqueiros e engenheiros assim como para trabalhadores convidados do Egito, Indonésia e Paquistão. O Kuait perdeu terreno política e economicamente e não são poucos os que acham que a democracia é a grande culpada por isso.
O empresário Yassin al-Shammari, 57 anos, é um dos que vêem dessa forma. Ele passou de carro pela assembléia nacional em Al Kuait com olhar de desprezo em seu rosto, sua reação a um dos prédios parlamentares mais belos do mundo, construído nos anos 70 pelo arquiteto dinamarquês Jørn Utzon, que também projetou a Ópera de Sydney. "Um lugar de discussão inútil", resmungou Al-Shammari. Como muitos de seus conterrâneos, ele olha com inveja para Dubai, Doha e Abu Dhabi, onde o governo dos xeques não precisa se preocupar com parlamentos ou oposição política.
Momento difícil para a democracia kuaitiana
O Kuait continua sendo um país rico e seria uma atenuação descrever sua classe média como bem desenvolvida. A renda média per capita de cerca de 1,2 milhão de kuaitianos fica entre a da Suíça e a da Alemanha. O país não é ameaçado por divisões étnicas ou religiosas como as encontradas no Iraque e no Líbano. Os kuaitianos continuam profundamente gratos pelo fato de há 17 anos os Estados Unidos terem libertado o país da ocupação militar de Saddam Hussein.
Se a democracia está enfrentando dificuldades em país amplamente abençoado com prosperidade, estabilidade e tolerância política como o Kuait, o que se pode esperar de outras partes do mundo islâmico? Que futuro terá no Irã, cujo Parlamento é cenário de debates animados, mas que não decide nada; na Indonésia, onde existe uma forma moderada do Islã em um sistema relativamente democrático; na Região do Golfo e no Norte da África, onde tribos e famílias governam em vez de partidos e sindicatos trabalhistas?
Os Estados Unidos, que pregam as maravilhas da democracia no Oriente Médio desde os ataques de 11 de setembro de 2001, não está facilitando as coisas para os defensores desse modelo político aqui e nas regiões vizinhas. "Desde a queda do Iraque, a própria palavra 'democracia' passou a ter um gosto radioativo", disse o ativista de direitos humanos saudita, Ibrahim Mukaitib. Ele disse que os sauditas instruídos vêm até ele e perguntam por que a democracia parlamentar é supostamente melhor do que os outros sistemas, quando governos democráticos dos Estados Unidos e do Reino Unido cometeram o erro colossal de ocupar o Iraque?
Não é preciso dizer, a guerra contra o terrorismo e a percepção disseminada no Ocidente de que Islã e terrorismo são a mesma coisa e não ajudam a promover a reputação da democracia no mundo islâmico. Por menos que a classe média da Turquia, as elites nos países do Golfo ou os estudantes no Irã tenham em comum com os jihadistas da Al Qaeda, uma tradição religiosa de 1.400 anos de Islã é uma força unificadora que vai além de suas diferenças.
Eles também compartilham um senso de amargura pelo fato da conversa de "democratização do Oriente Médio" ter cessado em conseqüência de o lado errado estar vencendo as eleições. Este foi o caso no início de 2006, quando o Hamas venceu nos territórios palestinos e, pouco depois, quando a Irmandade Muçulmana conseguiu quadruplicar o número de cadeiras que tinha no Parlamento egípcio. Nos foi recordado que a democracia às vezes leva ao poder pessoas que não são democratas, um dilema não desconhecido na história européia. A euforia provocada no Ocidente pela Revolução do Cedro no Líbano, e o forte comparecimento dos eleitores na primeira eleição pós-guerra realizada no Iraque, em 2005, rapidamente murchou.
Isso levou a um apoio renovado ao governo autocrático do tipo praticado pelo presidente do Egito, Hosni Mubarak, pelo presidente da Tunísia, Zine El Abidine Ben Ali, e pelo rei da Jordânia, Abdullah 2º. A democracia, dizem esses governantes, certamente é uma coisa boa. Mas a democracia também traz caos e o caos deve ser evitado. Essa é a lição que foi aprendida com o Iraque e, para eles, a estabilidade tem prioridade em relação à democracia.
Por que nenhum dos 22 países árabes é realmente democrático e por que a maior dificuldade para encontrar democratas genuínos na Turquia, Paquistão e Bangladesh do que em outros lugares? Os suspeitos habituais são os culpados -uma fraca classe média, um sistema de educação ruim, uma falta de tradição de debater as diferenças políticas? Ou o Islã e a democracia são fundamentalmente incompatíveis?
Os muçulmanos querem democracia com valores religiosos
Resultados surpreendentes foram obtidos por uma pesquisa Gallup, para a qual foram conduzidas entrevistas entre mais de 50 mil muçulmanos em 35 países por um período de seis meses. Não é a democracia em si que é o problema. Esta é uma forma de governo que 93% de todos os iranianos e 94% de todos os egípcios desejam para si mesmos. Onde há grandes diferenças é em relação ao tipo de democracia que é considerado aceitável.
Segundo John Esposito, co-autor de "Quem Fala pelo Islã?", um estudo baseado na pesquisa Gallup, o que a maioria dos muçulmanos quer é democracia com valores religiosos. Eles não querem perder sua cultura tradicional. Como a maioria dos paquistaneses, por exemplo, eles querem tanto mais democracia quanto mais Islã. Será que poderia ser dito que o que os muçulmanos querem não é uma democracia ocidental, mas sim um tipo de "democracia islâmica"?
Os muçulmanos lidam com a questão da melhor forma de governo e da legitimidade da liderança há mais de 1.300 anos. Os problemas começaram com a morte do Profeta Maomé, em 632. Durante sua vida, este mensageiro de Deus na Terra revelou um sistema de crenças abrangente aos seus seguidores, conquistou territórios, uniu tribos e formou alianças. Mas algo importante que Maomé deixou de fazer foi nomear um sucessor.
O falecimento do profeta, cujo nome significa "digno de louvor", deixou um enorme vácuo e a comunidade muçulmana se viu sem um líder. Quem na comunidade teria autoridade suficiente para ser um guia espiritual dos fiéis e ao mesmo tempo governante de um império que, no século 7, já tinha se expandido para muito além dos limites da Península Árabe?
Sem necessidade de democracia
Para um grupo de fiéis, os xiitas, o primo de Maomé, Ali, era o único herdeiro legítimo. Posteriormente os "shi'at Ali", os seguidores de Ali, se separaram da maioria muçulmana. Outro grupo, os kharijitas, acreditavam que qualquer fiel devoto e capaz poderia liderar os muçulmanos. Um terceiro grupo, a maioria sunita, entendia que o líder da comunidade, o califa, deveria ser da tribo do profeta, mas eleito por uma "shura", um conselho de homens respeitáveis.
Foi assim que uma forma autocrática de governo surgiu, uma que tinha a aparência de legitimidade democrática. O califa se submetia à lei islâmica ("sharia") da mesma forma que todos os outros fiéis. Os muçulmanos citavam versos pertinentes do Alcorão que elevavam a negociação de um meio-termo ao nível de um dever religioso: "E os consulte sobre a decisão. E se decidires algo, então confie em Deus" (Sura 3, verso 159). Dizia-se que se o califa fizesse uso indevido de seu cargo, então a shura poderia depô-lo, apesar disso nunca ter ocorrido.
Egon Flaig, professor de história antiga da Universidade de Rostock, no norte da Alemanha, escreveu que o Islã sunita oferecia "a forma mais bem-sucedida de teocracia na história registrada". Enquanto o representante de Deus na Terra defendesse a verdadeira fé e os sábios islâmicos tivessem a palavra final, não havia necessidade de conselhos, assembléias, eleições ou Constituições. No século 19, Alexis de Tocqueville escreveu que o "maometismo fundiu os poderes religiosos e políticos tão completamente que quase toda atividade na vida civil e política pode ser regulada pela lei religiosa".
Perto do final do século 18, a comunidade muçulmana começou a notar que havia algo errado com o califado. Após séculos de glória islâmica, a campanha triunfante de Napoleão no Egito forneceu uma prova devastadora da superioridade tecnológica do Ocidente. O Império Otomano reconheceu a seriedade da situação e daí em diante começou a enviar seus candidatos a oficiais para a Europa. O treinamento militar que receberam em Paris, Londres, Viena e Berlim seria usado para reformar suas próprias forças armadas. O período subseqüente de reforma governamental e social é tratado na história do Império Muçulmano como Tanzimat.
O primeiro monarca constitucional a existir em um país muçulmano foi criado pelo sultão Abdülhamid 2º, em 1876. A existência de um Parlamento otomano foi abreviada pela declaração de guerra da Rússia contra o "doente do Bósforo" apenas um ano depois. Temendo pela sobrevivência de seu governo, o sultão suspendeu a Constituição e ela não voltou a entrar em vigor durante seu reinado. Uma nova experiência com a democracia era considerada arriscada demais para a estabilidade.
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