"Os EUA podem estar prontos para liderar “mais uma vez”, mas e se o mundo não estiver mais pronto para os seguir? E se ele acreditar que os EUA perderam boa parte de seu direito moral de governar nos últimos oito anos, que não têm mais o poder que tinham, e de todo modo estamos caminhando para um sistema multipolar global, como o próprio Conselho de Inteligência Nacional em Washington prevê?", pergunta Timothy Garton Ash, professor da Universidade de Oxford, na Grã-Bretanha, bolsista sênior da Hoover Institution, da Universidade de Stanford, nos EUA, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 22-01-2009.
Eis o artigo.
Num discurso que foi muito bom, mas não com a tão propalada grandiosidade de Lincoln, o presidente Obama falou tanto para seu país como para o mundo. Acredito que ele se deu bem retoricamente e pode se dar bem praticamente com o primeiro público, apesar de todas as dificuldades correntes, mas tenho menos certeza sobre o segundo. Aliás, existe uma pouco notada tensão entre a maneira como ele fala para os EUA e a maneira como precisa falar para o mundo.
O grande tema de toda a sua vida até agora é a mescla de múltiplas identidades em um país que finalmente ficará de bem consigo mesmo. Ele não só é, como conscientemente se apresenta como a apoteose do sonho americano.
Como um artífice das palavras, ele é adepto de buscar uma linguagem para evocar essa mescla americana dos muitos e do um. Com o tempo, acredito que esse senso de um “nós” mais abrangente possa liberar novas e significativas energias humanas entre os membros menos privilegiados da sociedade americana.
“Nossa herança multifacetada é uma força, não uma fraqueza”, ele disse. Embora tenham sido loucuras financeiras americanas, tanto privadas como públicas, que originalmente nos meteram nessa confusão, os EUA, provavelmente, estão mais bem situados que a maioria dos países europeus para nos tirar dela. Isso pode não parecer justo, mas quem disse que a vida é justa?
CETICISMO
Então, a reconstrução dos EUA? Sim, ele pode. Nada no futuro é certo, exceto a morte e os impostos, mas ele tem uma chance mais do que esportiva, em especial se receber um segundo mandato. Mas reformar o mundo sob uma liderança americana renovada, nisso eu sou mais cético.
As coisas ficarão melhores que nos últimos oito anos, com certeza. Ele indicou algumas prioridades: combater a proliferação nuclear e a mudança climática, contribuindo mais para o desenvolvimento de “nações pobres”. Ele fez uma oferta especial ao mundo muçulmano: uma nova maneira de avançar “baseada no interesse e no respeito mútuos”.
A passagem-chave foi a seguinte: “E assim, para todos os povos e governos que estão nos assistindo hoje, das mais grandiosas capitais à pequena aldeia onde meu pai nasceu: saibam que os EUA são amigos de cada nação e de cada homem, mulher e criança que busquem um futuro de paz e dignidade, e estamos prontos para liderar mais uma vez.”
Maravilha! Mas o problema está no fim. Os EUA podem estar prontos para liderar “mais uma vez”, mas e se o mundo não estiver mais pronto para os seguir? E se ele acreditar que os EUA perderam boa parte de seu direito moral de governar nos últimos oito anos, que não têm mais o poder que tinham, e de todo modo estamos caminhando para um sistema multipolar global, como o próprio Conselho de Inteligência Nacional em Washington prevê?
RESTRIÇÕES
Estou chocado com a quantidade de pequenos “ses” e “mas” que protegeram até as costumeiras saudações de líderes internacionais. Angela Merkel, da Alemanha, ofereceu afeto e congratulações cristãs, mas acrescentou que “nenhum país sozinho pode resolver os problemas do mundo”.
Nicolas Sarkozy disse: “Estamos ansiosos para ele colocar a mão na massa para que juntos com ele possamos mudar o mundo.” (Assim, como vocês veem, a França está pronta para liderar mais uma vez.) Quando chegarmos à China, Rússia e a um mundo árabe irritado com o silêncio de Obama sobre Gaza, as advertências vêm não como farpas delicadas, mas como obuses pesados de artilharia.
É possível dizer seguramente que Obama, de todas as pessoas, compreende a profunda complexidade do mundo. Acho isso correto, e essa é a nossa grande esperança. O patriotismo americano, ligado também a essa ideia de uma missão para liderar, é a cola com que ele unificará sua nação cada vez mais discrepante.
Quanto mais discrepante ela for, mais cola será necessária. E isso não é apenas operacional. Essa história e essa missão são também, até onde posso julgar, coisas em que ele próprio acredita, pois a sua própria e extraordinária jornada pessoal não é uma prova cabal da verdade da história e da correção da missão?
Portanto, existe uma tensão entre a visão de liderança americana ao estilo Kennedy revivida no mundo que ele descortina para seu próprio país, e o que o resto do mundo quer ouvir ou estará agora pronto para aceitar.
Essa tensão, repito, não é uma absoluta contradição. Como lidar com essa tensão é um dos muitos desafios complexos que se apresentam a esse ainda jovem mestre da complexidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário