"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quinta-feira, janeiro 22, 2009

Gaza: uma catástrofe como Hiroshima

Instituto Humanitas Unisinos - 21/01/09

Hiroshima! Nagasaki!”. A ira e o desprezo de Refat abu Marzuk se solidificaram nas duas palavras que dirige com um tom enérgico e definitivo aos seus vizinhos de casa, se o termo ainda tem um sentido entre essas ruínas. Como alguns milhares de palestinos, ontem pela manhã, bem cedo, RefatIsrael para procurar pelos restos da sua propriedade na área de escombros conhecida até ontem como al-Brazil, bairro de Rafah. aproveitou o cessar-fogo declarado por

A reportagem é de Guido Rampoldi, publicada no jornal La Repubblica, 19-01-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Das seis fileiras de casas de dois ou três pisos que seguiam por dois quilômetros até a fronteira com o Egito, aquelas que ainda estão em pé são realmente poucas, e nenhuma dessas poucas estão intactas. É difícil encontrar, em uma guerra recente, uma destruição tão sistemática. E tão arbitrária. “Os túneis? Mas quais túneis”?, explode Refat. “Os poços dos túneis são mais adiante”. Nem todos: alguns entre as galerias que passavam sob a fronteira com o Egito começavam justamente nos porões desta casa. Mas para destruir a rede de túneis teria sido suficiente bombardear os 300 metros sucessivos, que dividem as últimas casas da fronteira, e particularmente as estufas, cujos plásticos opacos muitas vezes escondem os poços. Pelo contrário, a aeronáutica israelense decidiu esmigalhar as casas de dez milhões de habitantes em Rafah, quase todos ex-refugiados que já tinham perdido tudo nas guerras árabe-israelenses anteriores. Agora, Refat abu Marzuk, nascido há 61 anos em Ibna, hoje Israel, tem a impressão de que a história se repete. Que uma nova “nabka”, uma nova catástrofe, está por se abater sobre os palestinos: “Querem nos expulsar daqui também! Como em 1948! Como em 1967! Jogar-nos fora. E não permitir que voltemos atrás”.

“Vê essas ruínas?”, me diz Khaled abu Ghali, que também perdeu a casa, indicando-me os destroços que aprisionam a árvore sobre a qual caíram. “Era um edifício de três pisos, onde habitavam 82 pessoas. Não eram do Hamas, não tinham túnel no porão: tinham concluído que não aconteceria nada com eles. Quando os bombardeios começaram, não tiveram nem o tempo de salvar as jóias das mulheres. Escaparam assim como estavam”. E o que o senhor salvou? “Os filhos”.

Nem na periferia de Gaza é possível encontrar uma zona residencial atingida pelos aviões israelenses de um modo tão obsessivo. Atingida por bombas gigantescas, gordos torpedos de dois metros e meio de comprimento, como o artefato sobre o qual alguns meninos brincam de cavalinho agora, confiando que os soldados do Hamas desativaram o gatilho. Patinando na lama, encontro lâminas de tubos cinzas, os foguetes; buracos de 15 metros de largura e de 5 de profundidade; uma carcaça de ovelha, da qual só os chifres despontam na areia; a entrada de um túnel, intacto sob uma espécie de cabana de plástico preto; multidões de crianças à procura de pedaços de madeira longos e afiados como espadas. E encontro Fatima Madi, nascida há 60 anos em Seba, hoje a israelense Beersheva, sentada sobre um bloco de cimento, que uma vez pertenceu à sua casa. “Tinha dois pisos, e morávamos em dez. Não ficou nada. Nem os vestidos. O meu genro está desempregado, meu marido tem 60 anos. O que será de nós?”.

A próxima casa tinha um túnel no porão. Mas as bombas se limitaram a destruir uma das fachadas. Por que a magnífica aviação de Ehud Olmert levou ao chão boa parte das faixas de casas próximas da fronteira? Eis uma pergunta crucial para se tentar entender se esse precaríssimo cessar-fogo é o início de um trabalho diplomático que dará a luz a um gélido armistício, ou, pelo contrário, a continuação da guerra na forma de uma figura clássica, o Assédio. Uma possibilidade é que, nas intenções israelenses, esse tapete de ruínas se tornará uma espécie de faixa de segurança, larga o suficiente para desencorajar os escavadores de túneis. Mas isso não impediria o Hamas de aumentar o seu abastecimento de mísseis, já que os foguetes são fabricados em Gaza, e tudo o que lhe é necessário pode ultrapassar facilmente qualquer fronteira. A outra possibilidade é que Israel tenha pretendido aumentar a pressão sobre a fronteira egípcia para obrigar o Cairo a pegar Gaza pelas costas: isso lhe permitiria libertar-se tanto do hipotético Estado palestino quando das obrigações que derivam do grave papel de potência ocupante.

Justamente em frente às ruínas de al-Brazil está a fronteira com o Egito, ou mais exatamente aquela linha de muro que os habitantes de Rafah quebraram três vezes, impelidos pela penúria de gêneros de primeira necessidade produzida pelo embargo israelense. Mas se Israel espera que uma nova invasão obrigue o Egito a encarregar-se dos palestinos, provavelmente errou os cálculos. Os rapazes que encontro empoleirados no teto de um bunker na fronteira me indicam o muro egípcio, a 100 metros, paralelo ao muro palestino. “Não está vendo os capacetes dos soldados egípcios? Se invadirmos, eles disparam”.

Se se tratar de assédio, foi preparado com cuidado. No depósito de alimentos da Unrwa, a agência da ONU que há meio século assiste aos refugiados palestinos e agora também os fugitivos que obstruem Rafah, um funcionário me conta o que ocorreu antes. Quarenta e cinco dias antes do início da guerra, “Israel começa a fechar intermitentemente os silos de Karni, isto é, o único terminal de grãos que existe na faixa de Gaza. Em consequência, param também os três moinhos da Faixa, e para abastecer os 350 mil palestinos que ajudamos, nós da UnrwaIsrael decidiu que nos chegariam apenas 260 toneladas de farinha por cada carregamento admitido na Faixa, isto é, muito menos do que é necessário”. Vocês poderiam adquirir grãos e fazer com que os moinhos os moessem? “Dos três moinhos, dois foram destruídos pelos aviões israelenses, sabe-se lá por quê. Do terceiro, eu ignoro a sorte”. fomos obrigado a dar fundos para as reservas de estoque. Depois, a ofensiva israelense. Aos 350 mil palestinos, se somam dezenas de milhares de fugitivos. Os israelenses atingem o nosso maior depósito de alimentos, uma escola nossa, duas vezes os nossos automóveis. Acaso? Não. Em todo o caso,

O moinho maior ficava aqui perto, no vilarejo de Sofa. Os tanques israelenses o destruíram durante uma investida. Ele deixou de combater há pouco, a vegetação ainda fumega ao lado do distribuidor de gasolina agora submerso pelo teto de metal que se soltou em cima dele. Vamos rumo a Gaza junto com um cortejo internacional de ambulâncias, com médicos e remédios, que o governo egípcio decidiu deixar passar apenas agora. Sobre a estrada costeira, ali onde os tanques israelenses a interromperam para quebrar a Faixa em duas, me deparo com um minarete todo destruído, com a cúpula perfurada de uma mesquita, com vários edifícios semidestruídos.

Em Gaza, procura o bairro de Jebalia, ex-campo de refugiados e fábrica de radicalismo. Outras destruições, mas certamente menos do que em Rafah. Às margens de Jebalia, encontro a mesquita Taha, ou mais exatamente o seu minarete: o resto foi deitado ao chão pelas bombas. Sobre as calçadas em frente, uma centena de muçulmanos há pouco terminou de rezar. Pergunto ao imã, Yussuf Mohammed Shiada, porque a sua mesquita foi punida. “Gostaria de saber. Esta nunca foi uma mesquita do Hamas, mas do Fatah. Eu mesmo sou do Fatah. Decidimos reconstruir a mesquita em outro lugar, de modo que o minarete se torne um monumento. Justamente, um monumento aos crimes de Israel”.

Israel se manchou com crimes de guerra? A aparência é essa, mas será necessário investigar. Contanto que alguém o faça. E contanto que a Europa assuma as consequências. Senão, será ainda mais difícil do que convencer os palestinos a romper o círculo crime-impunidade-reação, ao qual eles também estão acostumados.

Em Rafah, em uma zona de escombros, há uma caverna abarrotada de cadeiras de plástico e de sofás. O homem que os aluga (as cadeiras para os velórios, os sofás para os casamentos) e seu filho são guerreiros da Jihad islâmica. O rapaz traz na carne os sinais do míssil israelense que o mirou enquanto voltava de alguma operação guerrilheira. O pai conta que, há um mês, não aluga mais sofás, só cadeiras. “Os únicos casamentos que se celebram em Rafah agora são as uniões entre os shaid, os mártires, e Alá”. Os mártires que se desposaram com Alá nos sorriem pelos manifestos que cobrem as paredes, com cartucheiras, metralhadora e macacões militares. Terroristas, podemos dizer. Contanto que se encontre um nome exato para os métodos com os quais o governo de Ehud Olmert guerreia.

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