"O passado ficou para trás. Temos um presente de ódios e de dor acumulados. Mas há que convir e repito: Israel existe como nação e como Estado e não há como negá-lo; a legitimidade do Hamas em Gaza e em parte da Cisjordânia é outra realidade inquestionável. São atores que aí estão e sem a anuência deles não há solução. Não serve fazer menção ao Holocausto, em sentidos opostos, ou reduzir tudo a fundamentalismos ou terrorismos. A indignação explicável não pode obscurecer um mínimo de lucidez", escreve Luiz Alberto Gómez de Souza, sociólogo, diretor do Programa de Estudos Avançados em Ciência e Religião da Universidade Candido Mendes, em artigo que publicamos a seguir.
Luiz Alberto é autor, entre outros, do livro Uma Fé exigente, Uma Política Realista, Rio de Janeiro: Educam, 2008.
Eis o artigo.
Faz muitos anos atrás, lá por 1965, em Cuernavaca, lembro de ter ouvido Erich Fromm, notável psicanalista judeu, dizer que a criação de um Estado de Israel fora uma traição à vocação de universalidade de seu povo, que por séculos, tantas vezes em meio a tribulações terríveis, foi a semente civilizatória que trouxe criatividade por onde andou, no pensamento, na ciência e nas artes. Refluindo para um território único colocava-se na contramão de seu sinal de irradiação numa diáspora fecunda.
Isso faz pensar, lendo o relato bíblico, num momento da história do povo judeu, quando este pediu a Samuel para ter um rei. Iahweh disse a Samuel: “não é a ti que rejeitam, mas a mim”. E o povo insistindo pediu: “seremos nós também como as outras nações”. Samuel previu o que viria: ”reclamareis contra o rei que tiverdes escolhido, mas Iahweh não vos responderá” (I Samuel, 8, 6-20). Começava o tempo da criação do estado, com Saul, Davi e Salomão, que iria durar, mesmo dividido em dois e ocupado, até sua destruição no ano 70 de nossa era cristã.
Passado muito tempo, tudo recomeçou e se acelerou com o movimento sionista de fins do século XIX, - criticado por Mahatma Gandhi - e chegando à criação do Estado de Israel em 1948. O povo judeu foi abrindo caminho na Palestina paulatinamente, por todos os meios possíveis, da ocupação de fato à violência sem limites, em terras por centenas de anos nas mãos dos árabes.
Mas a história não volta atrás e os possíveis equívocos do passado são irreversíveis. Hoje o Estado de Israel é um fato e não podemos negá-lo, em nome do que poderia ter sido diferente, mas não foi. Tem seus direitos assegurados na história e no direito internacional público. Ao lado dele há uma Palestina árabe, também com direitos inalienáveis, só que oprimida por um estado judeu mais desenvolvido economicamente e com fortíssimo poder militar, amparado por judeus do mundo inteiro e por seu maior aliado, os Estados Unidos. Bush, que parte em boa hora, levou esse apoio aos piores limites, ainda que o mesmo viesse de mais atrás. Barack Obama saberá, quererá ou poderá introduzir mudanças?
Antes de seguir adiante no raciocínio, olhemos para outras áreas do globo na atualidade e no passado. O mundo está cheio de mapas superpostos, como os que resultam de refazer as ambições da grande Sérvia ou a nostalgia de uma antiga Bulgária. Descobrimos minorias beligerantes aqui e ali: albaneses na Macedônia, sérvios no Kossovo. A própria Macedônia está dividida entre a república desse nome, a Grécia e a Bulgária. Os curdos, povo sem nação, estão espalhados em três países. No passado, a região dos sudetos levou Hitler a invadir a Checoslováquia. O mapa da Polônia foi resvalando em fronteiras movediças do oriente ao ocidente. Assistimos a ódios acumulados, como as chacinas na Bósnia-Herzegovina. Durante e depois das guerras do século XX foram se dando expulsões massivas de populações, extermínios como os dos armênios na Turquia, a princípios daquele século, tema proibido nesse país. O Iraque, criado pelos ingleses e sua companhia de petróleo, vai sendo dilacerado por invasão e tensões internas. O Afeganistão, eixo de passagem de culturas riquíssimas, nunca foi inteiramente dominado no passado, tantas vezes invadido pela barbárie de vários lados.
O tratado de Berlim de 1880 retalhou artificialmente a África, com fronteiras que não respeitaram diferenças de etnias e seus limites reais, aqui dividindo, ali agrupando, em traçados várias vezes de linhas retas nas cartas geográficas. Tutsis e Hutus massacraram-se em Ruanda, a população negra está sendo exterminada com requintes de crueldade no sul do Sudão. E por baixo de tudo, interesses materiais muito concretos, como o petróleo ou minerais raros.
A história é contada ao contrário nos dois lados de um conflito. A chamada reconquista da península ibérica, que levou tanto tempo, entremeada de coexistências (o Cid lutou contra os árabes e viveu anos em suas cortes), tem leituras opostas. É só lembrar o romance de Tariq Ali, À sombra da romãzeira. O mesmo se diga das cruzadas, agressão para uns, obrigação religiosa para outros. Veja-se do mesmo autor citado, o livro sobre Saladino.
É claro que nestes dias vivemos dolorosamente o sofrimento terrível do povo palestino em Gaza. Haveria uma solução fácil para apaziguar consciências de quem está vendo de fora: optar rapidamente por uns contra os outros, palestinos ou judeus, numa ótica parcial. Como superar o maniqueísmo, evitando simplificações? Há uma guerra de e-mails, a maioria na defesa do povo palestino, mas alguns justificando Israel. Manifestações pelo mundo se solidarizam com um ou outro bando.
Volto ao começo. O passado ficou para trás. Temos um presente de ódios e de dor acumulados. Mas há que convir e repito: Israel existe como nação e como Estado e não há como negá-lo; a legitimidade do Hamas em Gaza e em parte da Cisjordânia é outra realidade inquestionável. São atores que aí estão e sem a anuência deles não há solução. Não serve fazer menção ao Holocausto, em sentidos opostos, ou reduzir tudo a fundamentalismos ou terrorismos. A indignação explicável não pode obscurecer um mínimo de lucidez.
Não será o caso de visibilizar e difundir ações positivas que vão surgindo aqui e ali? Em Israel, jovens objetores de consciência são presos por se oporem a lutar numa guerra iníqua. Há movimentos pacifistas em Israel, como aquele em que milita Shulamit Aloni,- que conheci faz uma década-, ex-ministra, totalmente devotada a buscar o diálogo contra todas as aparências mais pessimistas. Do outro lado, temos um grande exemplo, de quem já partiu e faz tanta falta, Edward Saïd, palestino lúcido, severo com certa parte corrupta da antiga OLP, professor em Columbia e crítico musical no New York Times. Ele e Daniel Barenboim, judeu, pianista e regente, criaram uma notável orquestra com jovens palestinos e judeus. Sinais isolados, mas passíveis de consolidar alguns gestos positivos e fecundos. Não são esperanças voluntaristas, mas apostas num futuro que faça viável o que hoje aparenta ser impossível, superando um círculo vicioso mortal. A pressão internacional, a dor que se supera e não quer secretar ódios reiterados, podem lentamente construir alternativas, a princípio frágeis e incipientes, mas passos certeiros para sair de um processo aparentemente congelado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário