Wall Street Voodoo
por Paul Krugman, no New York Times
[sugerido por José Oswaldo Conti-Bosso]
A velha política econômica do vodu -- a crença na mágica do corte dos impostos [adotada nos Estados Unidos durante o governo de Ronald Reagan] -- foi banida do discurso civilizado. O culto do supply-side [teoria econômica segundo a qual com o corte de impostos e o encolhimento do estado sobraria mais dinheiro para os ricos e assim eles estimulariam a economia] encolheu a ponto de abrigar apenas ranhetas, charlatães e republicanos.
Mas o noticiário recente sugere que muitas pessoas influentes, inclusive autoridades do Banco Central, regulamentadores do setor bancário e possivelmente integrantes do governo Obama se tornaram devotos de um novo tipo de vodu: a crença de que a performance de rituais financeiros complicados é capaz de manter bancos mortos andando [trocadilho com Dead Man Walking, o filme].
Para explicar a questão, deixe me descrever a posição hipotética de um banco que chamarei de Gothamgroup, ou Gotham abreviado [possível referência ao Citigroup, o maior banco dos Estados Unidos, conhecido como Citi].
No papel, o Gotham tem 2 trilhões de dólares em bens e 1,9 trilhão em dívidas; assim sendo tem 100 bilhões de valor. Mas uma fração substancial dos bens -- vamos dizer, 400 bilhões -- são em papéis garantidos pelas hipotecas do mercado imobiliário ou outro lixo tóxico [papéis cujo valor estão em dúvida, já que as dívidas que os garantem não serão honradas]. Se o banco tentasse vender esses papéis não levantaria mais de 200 bilhões.
Assim sendo, o Gotham é um banco zumbi: ainda funciona, mas a realidade é que ele está falido. Suas ações não valem nada -- ainda tem um valor de mercado de 20 bilhões -- mas este valor é inteiramente baseado na esperança dos acionistas de que serão salvos pelo governo.
Por que o governo deveria salvar o Gotham? Talvez pelo fato de que o banco desempenha um papel central no sistema financeiro. Quando deixaram o Lehman falir, os mercados financeiros congelaram e por algumas semanas a economia mundial esteve à beira do colapso. Já que não queremos repetir essa performance, o Gotham deve continuar funcionando. Mas como fazer isso?
Bem, o governo poderia simplesmente dar ao Gotham algumas centenas de bilhões de dólares, o suficiente para mantê-lo solvente. Mas isso, naturalmente, seria um grande presente para os acionistas do Gotham -- e encorajaria que ele assumisse novos riscos no futuro. Ainda assim, é a possibilidade desse presente que mantém o preço das ações do Gotham.
Uma saída melhor seria fazer o que o governo fez com os bancos de poupança zumbis no final dos anos 80 [durante a crise dos Savings&Loans, empresas de poupança que faliram em massa]: assumiu os bancos falidos, limpando os bens dos acionistas. Em seguida o governo transferiu os bens podres para uma instituição especial, a Resolution Trust Corporation; pagou as dívidas dos bancos para torná-los solventes; e vendeu os bancos depois de colocá-los em pé para novos proprietários.
O atual burburinho, no entanto, sugere que as autoridades não estão dispostas a fazer isso. Em vez disso, estão gravitando em direção a um acordo: mover o "lixo tóxico" do balanço dos bancos privados para um "banco ruim", público, ou um "banco agregador" que se pareceria com a Resolution Trust Corporation, mas sem intervir nos bancos.
Sheila Bar, presidente do Federal Deposit Insurance Corporation [agência reguladora dos Estados Unidos], recentemente tentou descrever como isso funcionaria: "O banco agregador compraria os bens por um valor justo". Mas o que "valor justo" significa?
No meu exemplo, o Gothamgroup está insolvente porque os 400 bilhões que tem em lixo tóxico valem na verdade 200 bilhões. A única forma de o governo comprar esse lixo tóxico para tornar o Gotham solvente de novo é se pagar muito mais do que compradores privados estivessem dispostos a oferecer.
Agora, talvez compradores privados não estejam dispostos a pagar o real valor do lixo tóxico: "Nós não temos uma forma racional de precificar essa categoria de bens", a Ms. Bair diz. Mas o governo deveria entrar nesse negócio e declarar que sabe o valor desses bens melhor que o mercado? E pagar o "valor justo", seja isso o que for, será suficiente para tornar o Gotham solvente?
O que suspeito é que as autoridades -- talvez sem se dar conta -- estão tentando um golpe: uma política que se pareça com a limpeza das poupanças [como nos anos 80] mas que na prática significa dar um grande presente aos acionistas às custas dos contribuintes, disfarçando como compra de lixo tóxico por "valor justo".
Por que esse contorcionismo? A resposta é que Washington continua temendo a palavra N -- nacionalização. A verdade é que o Gothamgroup e suas instituições irmãs já estão sob tutela do estado, totalmente dependentes do apoio do dinheiro público; mas ninguém quer reconhecer esse fato e implementar a solução óbvia: uma explícita, ainda que temporária, intervenção do governo. Daí a popularidade do novo voodoo econômico que, como eu disse, acredita que complicados rituais financeiros podem reanimar bancos mortos.
Infelizmente, o preço dessa volta à superstição pode ser alto. Espero estar errado, mas suspeito que os contribuintes estão prestes a fazer um negócio ruim -- e que estamos a caminho de outro pacote de resgate financeiro que fracassará.
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