Às vezes vejo na calçada meninas empurrando seus carrinhos de bebê de brinquedo. Uma delas tem um carrinho cor-de-rosa, com dois lugares para carregar as bonecas gêmeas.
O artigo é da jornalista Fernanda da Escóssia e publicado no jornal O Globo, 06-03-2009.
Lembrei-me desse carrinho quando li a história da menina pernambucana de 9 anos de idade que engravidou de gêmeos, depois de ter sido estuprada pelo padrasto. Como a maioria das crianças vítimas de abuso sexual, a garota de Pernambuco conhecia seu agressor. Era alguém que poderia - deveria - protegê-la de ameaças.
Mas, ao contrário, ele abusava sistematicamente da menina e de sua irmã de 14 anos, até que a mais novinha engravidou.
Levada ao posto de saúde, constatou-se a gravidez. O suspeito foi preso. A menina foi encaminhada para atendimento médico e psicológico, aí incluído o direito ao aborto legal.
Duplamente legal, aliás, visto que resultou de estupro e acarretaria risco à vida da mãe. Seu corpo de menina, segundo os médicos, poderia não suportar a gravidez. O aborto foi feito.
O que poderia ser o fim triste de uma história de silêncios tenebrosos - a menina teria sofrido abuso pelos últimos três anos - arrasta-se mais do que deveria. A Arquidiocese de Olinda e Recife ameaçou usar recursos judiciais para tentar impedir o aborto. Malsucedida, excomungou quem patrocinou a interrupção da gravidez.
E talvez ainda vá à Justiça para acusar de “homicídio” os envolvidos na realização do aborto, como se fossem eles os criminosos.
Em 1997 houve caso semelhante em Sapucaia, no Estado do Rio. Uma menina de 10 anos, que o Brasil passou a conhecer como M. de Sapucaia, engravidou depois de ser violentada por um lavrador da região. A família conseguiu autorização judicial para o aborto, mas, pressionada por grupos católicos, acabou desistindo.
A Comissão em Defesa da Vida, ligada à diocese de São José dos Campos, levou M. para São Paulo, onde seu filho nasceu.
Depois, ela voltou a Sapucaia.
Em 1999, então com 12 anos, engravidou novamente. O aborto não foi autorizado, pois a Justiça não se convenceu de que a relação sexual fora forçada. M. de Sapucaia sumiu dos jornais e entrou para a estatística brasileira de gravidez precoce.
Fui criada como católica apostólica romana. Sou batizada e crismada. Meus dois filhos são batizados. Acreditar ou não na vida desde a concepção é questão de foro íntimo, e a crença de cada um não é debate do interesse da esfera pública.
No caso pernambucano, o que diz respeito ao interesse público é a atitude da Igreja Católica de punir, na esfera judicial e na esfera religiosa, quem agiu com base na lei, no bom senso e nas recomendações médicas.
O absurdo, o covarde, o inaceitável, é a ideia de usar a fé para penalizar quem tenta permitir que uma criança de nove anos junte cacos de uma infância despedaçada.
Em nome da fé, a Arquidiocese de Olinda e Recife volta aos tempos medievais e patrocina uma pequena Inquisição. Mas a fé não pode ser empecilho para o amor de uma mãe por uma filha, de um médico por seu paciente. Em nome da fé, a Arquidiocese atira a primeira pedra.
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