O pesadelo de 2001, quando a economia minguou e a população saiu às ruas fazendo panelaço, volta a rondar a Argentina. Com menos dinheiro entrando nos cofres públicos e contas no vermelho aparecendo sobre a mesa, a presidente Cristina Kirchner tenta soluções caseiras para segurar o avanço da crise financeira global no país. Assim como no Brasil, a turbulência assusta porque começa a emagrecer o expressivo crescimento dos últimos anos.
A reportagem é de Marcelo Flach e publicada pelo jornal Zero Hora, 08-03-2009.
Antes mesmo de a crise estourar lá fora, foi aplicada uma sobretaxa nas vendas externas do setor agropecuário. Depois, veio a estatização da previdência privada, até chegar ao protecionismo comercial – prejudicando diretamente o Brasil. Tudo para tentar segurar o superávit fiscal argentino. O indicador que ajudou o país a se expandir em um ritmo chinês – média anual de 8% entre 2003 e 2008 – desabou 41% em janeiro.
Apesar de medidas extremas terem sido tomadas no fim do ano passado, janeiro já desponta com uma queda de 4,6% na produção industrial – a primeira redução desde 2003. Outra prova dolorida da desaceleração é o crescimento menor do recolhimento de impostos. A alta foi de apenas 11% no primeiro mês de 2009, o pior resultado em quase três anos.
E isso que Cristina garimpou R$ 53 bilhões para os cofres depois estatizar fundos de previdência em outubro. Parte desse dinheiro estaria sendo usada, segundo críticos do modelo da presidente, para a crise global não fazer desandar de vez os números saudáveis da economia. A desaceleração já empurrou ladeira abaixo as exportações: houve queda de 36% nos embarques.
BNDES pode financiar compras do Brasil feitas na Argentina
Não foi diferente na relação com o Brasil. As trocas comerciais entre os dois principais parceiros do Mercosul seguiram em queda livre no primeiro bimestre do ano, despencando 40%. Parte dessa retração, em torno de 10% do exportado pelo Brasil, conforme levantamento do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, está relacionada com medidas protecionistas. As perdas chegariam a US$ 1,5 bilhão por ano.
Recentemente, 1,2 mil produtos brasileiros passaram a precisar de licença prévia antes de atravessar a fronteira. O governo argentino acusa o Brasil de práticas ilegais, como dumping (venda abaixo do preço de custo).
– Exigir licenças prévias para exportação é um passo atrás, aumentando a burocracia e os custos – afirma Alberto Joaquim Alzueta, presidente da Câmara de Comércio Argentino-Brasileira de São Paulo.
Entre essas medidas, uma que chamou atenção – não pela extensão, mas pelo detalhismo – foi a aplicação de uma sobretaxa provisória de 413% nas importações de talheres fabricados pela Tramontina, que detém 20% do mercado argentino. A empresa gaúcha prefere não comentar a decisão.
Na sexta-feira passada, novo endurecimento: as restrições para importações foram ampliadas e atingem ainda mais produtos gaúchos, como móveis.
– Enquanto os países estão tentando ao máximo deixar o mercado fluir, para afastar a crise, a Argentina toma o caminho contrário. Estão querendo passar a tranca na porta para não passar mais nada – lamenta Frederico Behrends, encarregado das negociações internacionais da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs).
A União Industrial Argentina acusa a produção do Brasil de carregar décadas de subsídios por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Mas será justamente o dinheiro do BNDES que o governo pretende usar para reduzir os atritos. O banco financiaria compras feitas na Argentina. A proposta vai ser apresentada nesta semana em Buenos Aires, tudo para o Brasil comprar mais do vizinho e parar de ouvir queixas.
Cristina e Lula se reúnem no próximo dia 20 em SP
Obstáculos para a entrada, obstáculos também para a saída de mercadorias. Com receio de falta de alimentos no mercado interno – o que seria uma vitamina para a inflação argentina, que terminou 2008 em 7,2%, percentual considerado muito baixo por economistas independentes –, o governo de Cristina Kirchner aplica impostos sobre a exportação de grãos.
Não bastasse esse complicador, o setor primário argentino, que representa cerca de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, viu sua eficiência e produtividade evaporar na pior seca em seis décadas, com perdas estimadas em US$ 6 bilhões.
No pronunciamento na abertura dos trabalhos do Congresso, este mês, Cristina adiantou que pretende criar novos instrumentos para permitir maior intervenção do Estado na economia. Com tantas medidas lançadas, há pessimismo com relação à possibilidade de se alcançar um acerto satisfatório no encontro entre a presidente argentina e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em São Paulo, no dia 20.
– Esperamos que a visita leve à redução do protecionismo. Afinal, na comitiva virão quase 300 empresários para participar de rodadas de negócios – afirma Alzueta.
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